Rojões e arrelias
Saudade mata a
gente, como bem diz o sagrado povo simples na sua natural sabedoria, porém mata
devagarzinho de forma quase imperceptível, fenecendo-nos aos poucos, um
bocadinho de cada vez. Ao notarmos a sua ação deletéria, constatamos ser muito
tarde para remediá-la. Não estamos nos referindo aos sentimentos que resultam
das separações que a morte, inexoravelmente, nos confere. Não! Trata-se aqui
das insignificâncias que vivemos no dia a dia, quando nunca suspeitamos que
esses fatos “primos chegados do nada” possam, algum dia, trazer-nos este
sentimento inconfundível de perda, que nós, os descendentes diretos dos portugueses
- como nenhum outro povo – chamamos de saudade. Alguns estão ligados aos
sentidos: os odores, os sons, os sabores, as luzes; não é raro, estes se
apresentarem de formas combinadas, como que mancomunados a nos entristecer no
futuro com a falta dessas citadas insignificâncias. Quanta falta nos fazem os
momentos únicos dos primeiros ensinamentos escolares?... E os primeiros
contatos com a arte, com a ficção? As primeiras sessões de cinema,
inesquecíveis e irretocáveis... As primeiras músicas, desde as flautas mágicas
dos pássaros às inocentes cantigas populares, de imenso valor cultural às
valiosas características inerentes a cada tribo, arruados – aglomerado
humano... Os cheiros e sabores das frutas, das comidas, dos perfumes, da terra
molhada... , até dos suores... E também o cheiro forte e irresistível do
sexo!...(sobrevivência da espécie).
Foto muita antiga do velho Cine São Francisco. |
Por falar em
cinema, conheci, nas décadas de sessenta e setenta do século que findou, várias
salas de exibições cinematográfica, que não mais existem, na querida cidade de
Caicó, paragem zelosa e terna aos meus dias de infância e adolescência. Eram elas: o Cine Pax (mais
romântico e antigo), o Cine Alvorada (este já proporcionava uma tela
Cinemascope aos cinéfilos daqueles tempos), o Cine São Francisco (com a
novidade de possuir um inovador mezanino) e o Cine Rio Branco ( o maior deles,
quase um Teatro). Todos, sem exceção, perderam-se no torvelinho do tempo e
passaram a existir somente nos interstícios indeléveis das lembranças... O
cinema era, naqueles dias de atraso provinciano, o maior desaguadouro dos
sonhos inocentes das várias gerações de jovens daquelas décadas inocentes. O
teatro, tão explorado por pessoas letradas, instruídas, daqueles sertões ignotos,
em outros tempos mais remotos, agora já não encontrava mais ecos de interesse e perdera-se no esquecimento
da falta de pratica. A televisão não passava de uma grosseira e estranha
invenção que nada nos proporcionava, a não ser alguns nocivos chuviscos visuais. Era, então, o império único
do celulóide da sétima arte, que reinou absoluto, por decênios, no lazer simples daquelas
gentes. É verdade que o rádio já dava com vigor às suas caras, havia bem mais
tempo. Era outro atrativo, mas não interferia na magia dourada do cinema.
À frente das últimas casas
de exibição de filmes em Caicó, por ocasião das sessões diárias ou nas
domingueiras, acostavam-se, provisoriamente, sempre alguns vendedores
ambulantes com suas guloseimas irresistíveis às vistas das crianças e
adolescentes.
O Cine Rio Branco - o último deles. |
Brejeiro era, na sua
essência, sobretudo, um sobrevivente. Lembro que, certa noite, por volta dos
festejos juninos, já que encerrara-se a
sessão de cinema por volta das nove e meia da noite, ele instalou-se com o seu
carrinho frente a sede do Círculo Operário de Caicó, que ficava próximo ao Cine
São Francisco, local onde realizava-se um animado arrasta pé para deleite das famílias da classe
trabalhadora de antanho.
Os caicoenses, como a
rigor os demais sertanejos da região do seridó norteriograndense ou paraibano,
são muito chegados às mesuras de um trote, a uma picardia. Por isto mesmo,
alguns minutos depois que Brejeiro instalou-se com o seu negócio frente àquele
banzeiro “coalhado de gente”, apareceram, vindos ninguém sabe de onde, os
primeiros buscapés a ameaçarem a sua função com suas labaredas desordenadas de
fogo a entrançarem nas rodas do seu carrinho e nas suas pernas, momento no qual
ele sapateava tentando se livrar daquele incômodo gritando: Ói cabra!!!!
Quá-quá-quá-cá-cá!...
Risadas à solta. A populaça se divertia...
Gargalhavam. Ele não teve sossego. Lá pras tantas começaram a jogar-lhes
rojões. Naquele momento, ele percebeu que não teria vantagem alguma se teimasse
em permanecer ali. Quando já se preparava para “bater em retirada” arremessaram,
em sua direção, um último artefato que notadamente ainda vinda consumindo o
pavio, momento no qual ele teve, instantaneamente, a infeliz idéia de rebatê-lo
com um chute. Ora! O acaso não iria se fazer de rogado e cumpriu fielmente o
seu papel: no momento que ele tocou com o pé na bombinha... Buuuuummmm!!!!! Ela explodiu,
chamuscando-lhe os dedos e as arreiatas da surrada alpercata. – Fiie duma iégua!!! Apareça se for homi, cabra safado! –
bradou Brejeiro, já com uma pouco amistosa peixeira em punho...
Natal-RN, 13 / maio / 2012.
Gibson Azevedo – seridoense.
Nenhum comentário:
Postar um comentário