sábado, 10 de outubro de 2009

A odisséia dos pássaros.


Caríssimos, a vocês, mais um mimo da memória:



Odisséia dos pássaros


As nossas certezas se nos descortinam como urna carga pesada em demasia; cobrando-nos - a vida -, um preço deveras alto pela ilusão da convicção..., da
segurança... Existem, no entanto, algumas aparentes certezas mais fáceis de destacar.
Como exemplo, cito: que à cidade de Natal-RN, na minha modesta opinião, faltam pouquíssimos detalhes para que eu possa considerá-la um apêndice do Paraíso; tanto é o amor que tenho por esta amada urbe e, a satisfação de residir à trinta e seis anos nos seus espaços físicos e imaginários. Mas..., nem sempre foi assim. Basta voltarmos um pouquinho no tempo e verificarmos que o amor que ora sinto por esta cidade, veio-me aos bocados. Natal foi, por adoção, conquistando-me aos poucos. De súbito, não; não me conquistou por inteiro. Houve um considerável período de maturação. Quatro anos, para ser exato. Minha origem é sertaneja, e sertanejo contínuo, apesar de três quartos de minha existência pertencerem à Natal; na qual, cúmplice, comunguei com o seu destino. Sou natalense! Talvez, mais do que os que aqui nasceram. Se se puder comparar, mensurar, constatar-se-á que eu estou certo. Sou natalense "da gema!" Não hesito ao afirmá-lo...

Houve, entretanto uma época, menino ainda, na qual mudamos da nossa cidade de origem - Jardim do Serídó -, e fomos residir na vizinha Caicó; de maior porte; cidade de outros ares. Reconheço não ter o espírito aventureiro, e aquela primeira mudança afigurou-se-me também como uma primeira ruptura. Alguns hábitos, costumes, a nós tão caros, foram na poeira do tempo deixados para trás. Os nossos momentos, fragmentos dos nossos dias, vivê-los-íamos em outras terras, noutro cenário. Ao mudarmos, tivemos a certeza: hoje, passado alguns anos, reafirmo, reconheço o caicoense como sendo o povo mais hospitaleiro, meio a tantos outros dos quais tivemos notícias ou contato. Repito sempre que se faz oportuno: que no período de oito anos, no qual a nossa família residiu na cidade de Caicó, em momento algum me senti um forasteiro. Nem nos primeiros dias! Naquela terra, daquele barro, forjam-se homens e mulheres de têmpera incomum, que, desassombrados, vislumbram ao futuro na natural valorização do presente. São Seres que tem apreço pelas coisas do passado. Tradições; cultura ancestral de jaez pacífica e de fé inquebrantável. São bem humorados, sorridentes, acolhedores e festivos. Qualidades que não os impedem de tornarem-se irredutíveis na defesa das suas convicções; deixando por vezes transparecer certa fúria, na preservação das verdades adquiridas com o passar dos séculos, no áspero clima dos sertões semi-esquecidos de outros tempos... Foi no salutar convívio com estas pessoas, que vivi parte da minha infância e os primeiros anos da adolescência. Posso dizer que foram dias extremamente felizes!... Firmamos, por aqueles tempos, amizades sinceras e duradouras; sempre renovadas nos reencontros que facultou-nos o acaso,

O tempo passou, e, lá pelos idos de sessenta e oito, no final do ano, para minha surpresa vi-me diante do Monsenhor Ausônío Tércio de Araújo, tratando de minha transferência escolar para que pudesse matricular-me no curso científico do Atheneu Norte-rio-grandense, nesta Capital. Surpreendeu-me também a relutância daquele
Educador em não satisfazer ao meu pedido de transferência.. Alegava-me naquela ocasião que, era de estudantes como eu, que mais precisava o recem-fundado curso científico daquele augusto Colégio. Verdade! Jamais imaginei-me observado. Julgava-me, por inocência, ser um aluno insignificante, dispensável... Foi o meu primeiro real contato com o mundo dos adultos... Marcou-me, aquele diálogo! (que pena!..., não pude ficar...). O fato é que, meu irmão mais velho já morava em Natal, e os meus pais preferiram unir novamente toda a família sob um mesmo teto. Daí, a mudança!

E então, no começo do ano de mil novecentos e sessenta e nove, logo após ao carnaval, numa madrugada fria - temperatura comum nas suas primeiras horas -, uma mal arrumada bagagem numa carroceria de um caminhão, deslocava-se com lentidão com destino à Capital do nosso Estado. Os primeiros raios da aurora encontraram-me mergulhado em profunda tristeza. Ensimesmado, naquela torrente de solavancos, imaginava, sob os efeitos do trauma de romper às inocentes alianças juvenis, como seria a minha vida daquela data em diante. Nada seria como dantes!... Somente o amor à Caicó dos meus sonhos!... Foi uma ruptura duríssima! Talvez isto explique, a minha total aversão a qualquer tipo de viagem.
Entretanto, meio à minha tristeza, a mudança..., os cacarecos..., divisei com espanto olhares mais tristes que o meu. Vi, de súbito, vários pares de olhos a mirarem tristonhos às últimas imagens das queridas paragens do Seridó. Eram nossos pássaros de gaiola, que, por conta do nosso egoísmo, foram bruscamente subtraídos do seu amado habitat. Nunca mais cantariam com alegria, hábito comum entre eles; mesmo quando se lhes era cerceada à liberdade. Aqueles olhares tristonhos prenunciavam uma imensa saudade da sua querida terra; terra dos seus pássaros ancestrais, que felizes conviveram com os antigos povoadores humanos, os valentes Tapuias.

Dizem ser possível aos humanos, guardar ao sabor do tempo um tipo de memória, chamada de: "memória coletiva". Só aos homens? - pergunto. E aos pássaros?


Natal-RN, 31 de Maio de 2005.
Gibson Azevedo

2 comentários:

Poeta do Penedo disse...

De certa forma, passámos pela mesma experiência. Também eu conheço o sabor amargo de ter deixado a minha adorada Coimbra, ao meu 18º ano de vida. Também a mim se me apresentou uma nova terra, Alfeizerão, então uma pequena aldeia da Estremadura portuguesa, que primeiramente se me revelou antipática, abrindo-se, por fim, numa hospitalidade abençoada, tendo conseguido desvanecer a saudade coimbrã que me atormentava. Da Moura do Ocidente- Alfeizerão, guardo agora muito gratas recordações...mas o meu coração continua conimbricense, o coração de um futrica do Mondego.
Um fraterno abraço, meu caro Gibson.

Gibson Azevedo disse...

Obrigado Poeta, por tu te interessares por umas poucas reminiscências à toa, ocorridas nos sertões rude, ha muitas léguas de distância, nos grotões de um outro continente.
Grande abraço, amigo Peota do Penedo

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