Preces e nostalgia interrompidas
(Francisca Paulina de Medeiros-Dona
Balé)
No desejo
incontido de
aproximarmo-nos das coisas e hostes Divinas, incorremos no patético erro de, com naturalidade, compararmos as nossas crianças com os anjos dos céus; julgando-as incapazes de cometerem algum tipo de perversidade, delito; de perpetrarem com consciência algum lance de maldade. Até poderíamos encarar desta maneira, se
reportássemos aos primórdios da humanidade quando não havia a menor noção de ética, moral ou lei. Àquele ambiente de barbárie, se justificaria a máxima que graciosamente diz: "toda criança nasce boa; sofrendo as más transformações por culpa do meio no qual vive e desenvolve-se". Nada é mais falho e enganoso do que esta afirmativa. Uma criança como todo
animal em formação, em fase de crescimento, não tem
ideia que existam normas que passam interferir à sua liberdade, ao seu arbítrio
desmesurado. O momento do conhecimento de tais normas é um impacto súbito que decepciona e tolhe as
ações destes pequenos seres, em pleno desenvolvimento; e que naturalmente revoltam-se ao depararem-se com as primeira reprimendas, primeiras surras ou castigos, motivados por conceitos, normas e regras preestabelecidas e necessárias à convivência do homem em sociedade. É assim nas grandes cidades e mais ainda nos pequenos lugarejos. Nestes pequenos arruados é natural que os " bichos-miúdos" cresçam libertos em
contado com os encantos da natureza. Isto posto, convenhamos, afloram facilmente nestes
pequenos seres a imparcialidade entre o bem e o mal, trazida talvez de outras vidas (
pré-uterinas ), como muitos acreditam. Vem daí, talvez, a desordem no
caráter a na conduta destas existências em começo. Diabruras mil tornam-se rotina do dia a dia na horda destes pequenos malfeitores. Principalmente, como já foi apreciado, nas grandes cidades. Pode-se, no entanto, dizer, tratar-se de afrontas inocentes, fúria de pequena monta, próprias da imaturidade, da pouca idade. É verdade, deveras, é fato. Não muda, todavia, o resultado da observação que nos leva a acreditar que já nascemos portadores dalgumas falhas. Falhas estas, que requerem
exaustivos cuidados no polimento das superfícies grosseiras das colunas de sustentação do
caráter destes pequenos animais, que, com o passar do tempo, decerto, tornar-se-
ão homens. A maioria, circunspecto e ordeiros. Sempre foi assim..., e assim será...
* * *
Alguns exemplos , ora raros, de mulher, encontrávamos com
frequência até os primeiros quartéis do século vinte e que foram surpreendentemente rareando à medida que aproximávamos do final deste mesmo século. Eram mulheres de uma fibra
duríssima, resistentes às piores intempéries, que as tornavam
impávidas aos mais negros e medonhos presságios. Obedientes aos pais e
posteriormente aos maridos, não raro tinham vontades próprias realçando-lhes o
caráter, sem, como de costume, entrarem em conflito com seus tutores naturais. Eram mulheres obreiras, de uma
praticidade que saltava aos olhos; tementes a Deus - catequizadoras -, exigentes disciplinadoras para com os filhos, sem, contudo , faltar-lhes com o salutar carinho e afago de mãe tão necessários nos
primeiros anos de vida. Eram criaturas admiráveis!... Quando jovens, adornavam-nas uma invulgar beleza áspera, como as existentes nas flores dos cactos dos áridos tabuleiros ou nas flores dos pântanos dos sítios de alagadiços. Na idade madura e
também na velhice, adquiriam, na condição de matronas - por vezes, de
matriarcas -, a serenidade h
ígida das velhas árvores, sem
máculas que as desabonassem no seu
lenhoso tronco moral.
Transmitiam-nos conselhos valiosíssimos,
baseados em experiências vividas ao longo de suas honradas vidas.
Assim viviam aquelas fantásticas mulheres... Particularmente, da mesma forma viveu e vivia Dona
Balé. Abraçou com resignação aos
desígnios de Deus; conhecendo muito cedo as agruras da viuvez, com a morte do seu finado marido. Convites para
contrair novas núpcias, decerto não lhe faltaram. Não quis! Recusou-os. Preferiu seguir sozinha... Agora, por último, com os pensamentos voltados às orações
votivas aos santos preferidos e às doces reminiscências de um passado distante, existia, aquela senhora, no
páramo de sua merecida
vetustez, um fim de vida cheio de pequenos hábitos, com horários rígidos, apesar de excessivamente rotineiros. Dentre tantos, havia o costume de à
tardinha, horário no qual fazia sombra no
frontispício da sua casa e corria errática uma aragem fresca
por aquelas vias, colocar uma cadeira de balanço na calçada e entre uma conversa e outra, Dona
Balé desfiava pacientemente as contas de um antigo rosário. Rosário sim!..., pois terço ficou para as rezas de preguiçosos, como diziam os mais velhos - seus ancestrais. Entre os seus mimos de velha, destacava-se a atenção carinhosamente dedicada ao seu estimado gato,
cevado a leite gordo, queijo e carne fresca, algumas vezes durante a semana. Aquele obeso animal atendia pelo diminutivo de "bichano",ou seja: "
chano", ou
mimosamente "
chaninho". Nunca encarou um rato na vida. E nem era necessário, já que sua dona enojava-se com tal
ideia. Em resumo, aquele pequeno felino vivia de exercitar a sua beleza e sua indisfarçável preguiça. Da cadeira de balanço de onde a distinta senhora observava a, então nostálgica, cena urbana a receber os últimos e mornos raios solares do dia que findava, podia ver perfeitamente o que se passava no adro da Igreja matriz, que ficava próxima ao Grupo escolar e a Prefeitura; todos postados em volta da singela
Pracinha de saudosas
retretas. Nesta
direção, sem esforço, tudo podia ser notado; até com certa brevidade. O mesmo não se podia dizer com relação à rua que ficava em sentido contrário; a rua que dava acesso ao Cemitério, que só crescia a importância por ocasião dalgum cortejo fúnebre.
Estava Dona
Balé absorta nas suas orações, pois já se avizinhava a hora do
Ângelus, sem jamais imaginar ou supor que em outra dependência da sua casa - na cozinha - desenrolava-se uma cena com o seguinte e estranho diálogo:
-
Tulinha, você trouxe o "
trepa-moleque"? - perguntou um dos fedelhos, vizinho e amigo de todas as horas e aventuras do seu pequeno comparsa.
-
Taqui ó! - exibindo, ao tirar do bolso, o rudimentar fogo de artifício - respondeu o pequeno fedelho , neto da citada matriarca.
- Pegue o gato,
Minhadela! Se não pode chegar
alguém...
-
Chanin!...,
pssil ...
ssil,
pssil...,
sissil!...
Chanin! Com esta
pantomina pueril, aqueles pequenos duendes urbanos,
surrupiaram momentaneamente o adorado felino, depositário dos mimos excessivos da Dona
balé.
(É bom que se explique que um "trepa-moleque" é um tipo de fogo de artifício que consiste de: sete
traque e uma bomba num só
artefato; ou seja: sete tiros menores sequenciados e um
espocar maior no final.)
Saíram sem serem vistos, com o bichano a tiracolo, pela rua de trás, que na verdade era um beco que dava acesso aos muros das casas que tinham suas fachadas voltadas para a rua principal. Caminharam
céleres em
direção ao pontilhão que dava passagem sobre o riacho que serpenteava frente ao cemitério. ( Já levavam, economicamente, um toco de cigarro aceso.) Lá chegaram e, sem demora, amarraram um barbante no rabo do animal, que vendo aquela brasa bem viva, ronronava arrepiado, soprando, "
zanho", como se quisesse apagar a
chama de uma vela. No momento seguinte, amarraram a outra ponta do cordel no "trepa-moleque" e, sem o menor remorso, atearam fogo ao
estopim do
artefato pirotécnico.
* * *
Bem, o mimado gato não era afeito a grandes emoções, vivendo uma vida sem
vexames, sem surpresas. Nada, a rigor, interferira na rotina da sua vida calma. Até aquele dia...
Disparou, aos pulos -
incomuns, até então - , logo que ouviu o chiado do pavio e o cheiro da pólvora queimada. O primeiro tiro ocorreu quando já alcançava à esquina e, neste momento, deu conta que arrastava o próprio inferno atrelado à sua cauda. De um só pinote atravessou a rua. Quando chegou à outra calçada, a do Grupo Escolar, avistou sua dona sentada na cadeira de balanço, do outro lado daquela via pública. Neste
ínterim, aconteceu o segundo
espocar, que o forçou a
esvaziar, de pronto, o farto conteúdo do seus intestinos. Seguiu feito
um bólido, em movimentos de ziguezague na tentativa de livrar-se dos
pipocos que se seguiram, até que, na pressa de entrar em casa, não encontrando a porta livre, pois a cadeira de balanço parcialmente atravancava-lhe à passagem, por instinto, deu um pulo por cima da mesma, na qual,
trêmula de espanto, de lívido aspecto, encontrava-se a indefesa Dona
Balé. E assim, como se fosse obra do
demônio, nos subterrâneos das coincidências, a última e maior explosão ocorreu justamente naquele fatídico instante:
Buumm!
- Ai,
Jisuis! - foram , segundo testemunhas confiáveis, as únicas palavras que a inocente
anciã balbuciou antes do inevitável desmaio, na exaustão da suas forças.
Natal-
RN,24/
set./ 2008.
Gibson Azevedo da costa
PS.: é bom esclarecer que o couro dos fundilhos dos citados "anjinhos", foram, devido e severamente, lenhados.
Huumm...! Nádegas doídas..., dificuldade ao sentar. Ainda bem!