terça-feira, 29 de março de 2011

Mais uma bocada


             Outra aberração humana viveu, em época mais remota, por aquelas plagas, onde era conhecido pelo nome de: Binidito Acelera. Este era um negro enorme, com o abdome saliente formando uma grande barriga. Era louco, porém adaptado na medida do possível ao convívio social, sendo muito requisitado para  alguns trabalhos pesados, quando era necessária uma força descomunal.

              Contam os mais velhos do lugar, que aquele energúmeno, veio à pé, trazendo sobre sua cabeça uma mesa de sinuca, desde a cidade de Ouro Branco até o município de Jardim do Seridó, percorrendo naquela oportunidade a distância de algumas léguas. Dizem que ao chegar, resfolegante e estropiado, aproximou-se do Jardim Hotel na esperança de, lá haver alguma sobra de comida. Já passara, um pouco, o horário do jantar... Por coincidência havia sobrado uma grande quantidade de coalhada – uma lata e meia, para ser exato; daquelas de vinte litros, que traziam querosene e eram reaproveitadas nas mais diversas maneiras.
                 
               - Cumpade Binidito aceita uma coalhadinha? – perguntou Dona Chiquinha Brito, ao notar-lhe o aspecto de esfomeado (no que foi aceito de pronto e de bom grado pelo ‘bamba das comilanças”). Despejaram o conteúdo fermentado, das duas latas, numa bacia de lavar pratos e adoçaram-no adicionando um punhado de raspa de rapadura. Foi neste instante que começou a juntar alguns curiosos, que teimavam que ele não conseguiria devorar toda àquela comida.
                 - A coalhada ta boa, cumpade Binidito? – perguntaram-lhe puxando conversa.
                 - Tá! Mas ta fartando uma farinhazinha!... – respondeu Binidito Acelera, já raspando o fundo da bacia com uma enorme colher.
                  Infelizmente, o paradeiro daquela curiosa figura é um enigma. Nada se sabe sobre o seu fim. Sumiu no oco do mundo....  É assim que termina a vida de alguns representantes simples da espécie humana: da mesma forma espontânea como surgem, também, sem deixarem rastros, desaparecem... Talvez seja melhor, pois!...
     

         Natal-RN, 29 de março de 2011.
                  Gibson Azevedo - poeta.





terça-feira, 22 de março de 2011

Boca livre.



                          Boca livre


              Neste mundão de meu Deus, sobrevivem risonhos e de bem com a vida, indivíduos que teimam em ser felizes, mesmo que o dia a dia se lhes afigurem desencorajadores, lembrando augúrios de desordens, advertindo-os às incertezas do caos. Apesar disto, indiferentes, tocam a vida de forma desassombrada, com um humor revigorado – como se novos fossem , luzindo néscios - ao exporem um brilho de envernizado recente. São seres bárbaros..., e, no entanto são muitas vezes vítimas da barbárie.
              Falando em barbárie, esta tem nos acompanhado pelos séculos sem fim, desde os mais ignotos tempos até os dias mais recentes,  época de documentação mais farta. A barbárie tornou-se companheira siamesa do homem, tornando-se muitas vezes impossível separá-los; evidenciando assim, a arrebatadora força que os atrai.
              O século passado deu-nos a falsa impressão de ter sido o mais violento, abominável e desprezível... Não só os últimos cem anos foram violentos. Todos os outros foram regados a sangue e misérias. O que houve foi o avanço da tecnologia e a facilidade de documentar-se o citado período. É tudo igual! Apesar de ter havido a primeira e a segunda guerra mundial, quando se usou pela primeira vez armas químicas e também executou-se sumária e covardemente multidões de viventes inocentes, com gases tóxicos com fins inseticida – como, se insetos fossem - ,  na mais impensável das atitudes. Desmantelou-se a tênue harmonia que impedia que atravessássemos os limites da ignorância para os domínios da bestialidade, do demoníaco; no entanto, nada nos garante que os tempos antigos tenham sido mais pacíficos. Usou-se, todavia, um novo engenho de matar: a radioatividade! Esta energia desmedida, liberada pela fissão nuclear, mata imediatamente; e mata também a médio e a longo prazo.  Matou, entretanto, de roldão, alguns resquícios de inocência que dormia latente na alma feroz do ser humano.
               Não acabou por aí! A violência continua..., esta praga nefanda!...

   *    *    *  
   Os bárbaros de minha terra não são assim tão violentos. Na maioria, são abrutalhados, trogloditas; alguns dementes... Dignos de pena, risotas, escárnios..., raramente, dignos de vinditas. Apuremos:
   Um jovem “botador d’água” conhecido como Manuel Bernardo, exercia essa profissão nos tempos nos quais não existia água encanada do serviço de saneamento básico, nos idos de cinqüenta e sessenta.
  Andava, por vezes, aliviando a carga dalgumas fossas sépticas, mesmo que esta não fosse a sua principal atividade, mas que a esta se somava: a sua sobrevivência. Aquele indivíduo era um sofrível jogador futebol nas horas vagas. Muito cheio de gingas e firulas improdutivas, granjeou com isto a admiração e a gozação dos seus contemporâneos. Achava-se muito parecido com Quarentinha, à época centroavante do Clube Botafogo de Futebol e Regatas. Não faltava quem lhe desse  esse tipo de corda... Ele acreditava.
 Quase baixo de estatura, era, todavia fornido, parrudo, “torado no grosso”. Apesar de ser analfabeto, era fluente; com um palavrório arrevesado lesava aos crédulos e simplórios, pois dava, com isto, o entender de ser o que não era.
 Manuel herdou, dalgum amigo bem sucedido, um paletó de linho diagonal com o qual fazia lúdica figuração nas festas de padroeira e ou natalinas. Muito pronto e apessoado, exercitava o seu conversê em ambientes onde era pouco conhecido, identificando-se como sendo o Sr. Carlos Alberto dos Santos, filho do prefeito do município.  Esse Cantínflas caboclo tinha a força de uma “saúde de ferro”. Talvez por isto, exagerava nas extravagâncias que fazia com o seu próprio organismo: Comia feito um quadrúpede! Bebia qual um urso!...
 Nos dias de eleições, quando os eleitores campesinos deslocavam-se da zona rural para exercerem o seu dever cívico na sede do município, era comum os chefes políticos lhes patrocinarem o almoço. Manuel Bernardo, mesmo não sendo eleitor, visto ser analfabeto, e nem ser morador do campo, dava o seu jeito de descolar umas três ou quatro ordens de almoço, e as utilizava todas. Não raro, pessoas assistiam àquele “animal” comer numa bacia de lavar rosto, pois as dimensões de um prato seriam insuficientes para satisfazer a sua gula.
- Mané!... Um dia destes, você estoura..., você morre, Mané! – Advertiam-no alguns conhecidos.
- Eu garanto qui num vô dar trabalho a ninguém! – Rebatia Manuel.
 Realmente, algo parecido aconteceu:
 Quando aquele pequeno titã percebeu fugir-lhe a saúde da juventude, provavelmente devida à tísica que solapava àquela formidável fortaleza humana, não hesitou:
             Enforcou-se em um punho de rede de dormir...

             Este é um dos lados trágicos da miséria.

              Natal-RN, 22 de março de 2011.
                         Gibson Azevedo.

sábado, 12 de março de 2011

Ânsia e saudade







                     








 Ânsia e saudade



Vem, que no meu íntimo rogo a vinda do teu ser,
Para que possa sua presença desfazer
A timidez que domina o meu viver...

Sinto, na alegria do meu canto,
Disfarçada a distonia do meu pranto
E a saudade se aloja em meu peito,
Sem que eu lhe dê o direito
De envolver-me tanto...

Venho, vou e volto,
Mesmo tarde gostarei da tua vinda
- Alegria semimorta, mas não finda! –
Tempos passaram e aqui estou ainda,
Na espera demorada que suporto.



Natal-RN, novembro de 1972
   Gibson Azevedo - poeta.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Deus protege os inocentes.




Deus protege os inocentes 
Existe um adágio popular que diz: "Deus protege os inocentes"! Apesar de um tanto piegas, esta afirmativa, depois de alguns fatos comprovarem, se nos apresenta como sendo verdadeira. Para isto, necessário seria, colocarmos neste mesmo segmento, além das crianças, bêbados, dementes e idosos; da mesma forma, pessoas incultas, onde o intelecto nunca ultrapassou os limites da infância, tornando-os, mesmo não sendo, em aparentes debiloides. Abilolados também, são as pessoas excessivamente crédulas, que acreditam sem questionar, em: políticos, na religião, nas autoridades ou em pessoas de presumível cultura e erudição. A verdade não está, necessariamente, na opinião e atitudes destas pessoas. Estes sim, usam -nos como massa de manobra. Os crédulos inocentes - os incautos -, que sendo ingênuos,são chamados de Lesados", em virtude de andarem, quase sempre, embrulhados nas artimanhas dos “sabidões”.
Só que, em suas crenças compulsórias, nada dispõe-se a protegê-los. É justo entretanto, que deduzamos que existe um Deus, mesmo com certa preguiça, a ampará-los.
Alguns flagelos cíclicos ou episódicos, podem levar o ser humano a um estado de letargia de aspecto pueril, confundindo-se à demência. A miséria e a pobreza extrema, com frequência, causam o mesmo efeito. O fato do indivíduo nascer e sobreviver em regiões agrestes, inóspitas - lugares ermos -, levam-no invariavelmente a um estágio evolutivo quase nulo, deixando-o similar, em quase todos os aspectos, aos nossos parentes genéticos - os primatas - que ainda encontramos com facilidade em estado bruto e natural, nas poucas florestas intocadas. O isolamento promove estes indesejáveis retrocessos ao homem.
Entretanto, em contato íntimo com a natureza, este hominídeo dos tempos modernos defende-se como pode. Daí a crença de poder contar com as boas graças do “todo-poderoso", num viver aventuroso, cheio de riscos, sem garantias. Nas pequenas cidades acontece a mesma coisa. Pouquíssimas, são as diferenças!
Como se vê, a inocência faz morada no viver inconsciente das almas simples, fruto duma confiança cega em forças que, na maioria das vezes, portam-se indiferentes e silentes aos seus anseios e apelos.
Agora, alguma coisa os protege! Talvez o acaso. Disto,ninguém pode ter dúvida. Senão vejamos:
Xeno, um pobre motorista da cidade de Jardim do Seridó, era um homenzarrão caucasiano, grisalho, de pele curtida, olhos verdes, arcabouço esquelético um pouco encurvado devido à boa estatura e, um caminhar marcado porém oscilante. Vivia deambulando pelas vias públicas daquele arruado, quando num dado momento deparou-se com Geraldo Dias, que se preparava para dispensar ao lixo, três curimatãs que trouxera de seu Sítio e que esquecera de salga-las. Por um lapso de memória esqueceu de conserva-las no sal prezo, assim como não as manteve confinadas ao refrigerador. Daí, no seu entender, houvesse ficado estragadas. Surpreso, Geraldo ouviu os protestos de Xeno:
“- Cumpade Gerarrdo!, pelo amor de Deus,  num faça uma disgraça dessa, não!!! Eu num acritido, que você vai jogar fora esses pexim, não...!”
“- Cumpadre Xeno!” - Preveniu Geraldo – “Esses peixes estão podre, homem!”
“- Chêu vê..., ssffhummm!”- Disse Xeno, cheirando as parte internas daqueles pescados.

“-Não, cumpade! Isso é até um pecado...eles tão bonzím!...” - Sentenciou Xeno com o nariz impregnado daquela saburra malcheirosa e, já  os enrolando em um papel, para apressadamente deslocar-se na direção da sua casa. 
É de domínio público, o fato de terem comido o tal repasto, e, ninguém da família ter adoecido.
Lá mesmo, na mesma cidade, outro causo aconteceu quando, a porca, que pertencia a Dona Preta (esposa do Seu Chico Galdino), amanheceu morta. Já passava das duas horas da tarde, quando Ciço Teixeira - um negro muito querido, figura popular - apontou no começo de uma das ruas do centro daquela urbe, empurrando um carro de mão. Levava a pesada porca, já dura, para fazer sua desova em algum lugar desabitado, um pouco além da periferia. Foi aí que apareceu outro personagem caricata, destes que emergem com muita facilidade do seio da populaça; que contam no entanto, com a simpatia de figuras mais abastadas destes lugarejos. Este cidadão,atendia pelo nome de Limoeiro - Limão, para os íntimos. Negro alto e forte, olhos repuxados; bigode farto - tipo bigode de arame. Limão, assim como Ciço, era “pau pra toda obra”. Ambos eram cabeceiros, serventes de pedreiro, esgotadores de fossas, etc., etc. Apesar de gostarem muito de cachaça, eram tidos como os bambas dos serviços gerais! Limoeiro também exerceu por algum tempo o ofício de coveiro.
Vinha, como vimos, Teixeira fazendo o seu bizarro carreto, quando Limão interpelou:
                     “- E aí negão? Vai levando esse buato pra onde?”
“- Vô jogar num monturo!” - Respondeu Teixeira.
“- Mas cumpade Ciço, o qué qui ove com esse buato?”
“- É a porca de Dona Preta..., mãeinceu morta!”- Asseverou Teixeira.
“- Deixe eu dar uma oiadinha nela, negão!” - Disse Limão, já abrindo a boca da defunta.
                     “- Ah! Cumpade Ciço, o buato morreu de ingasgo!...  Vamo tirano esse buato lá pra casa, quêle tá primêra!” - Rematou Limoeiro...
                   
                     Alguns dias se passaram quando, por curiosidade, foi inquirido sobre o paradeiro da porca. Limão informou que comeram tudo, à exceção de algumas vísceras. Disse, ele:
                     “- Tirano os bofe e o figo, o resto tava primêra!!!”
-  E vocês, Limoeiro, não sentiram nada, não? - Perguntavam outros.
“- Não. Tirano uma bufinha fedorenta, ninguém sintiu nada, não!”- Respondeu satisfeito, aquele protegido do acaso.

Satisfeita também, certamente ficou a roleta do destino...



           Natal-RN, 03 de março de 2011.
                       Gibson Azevedo
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