terça-feira, 22 de março de 2011

Boca livre.



                          Boca livre


              Neste mundão de meu Deus, sobrevivem risonhos e de bem com a vida, indivíduos que teimam em ser felizes, mesmo que o dia a dia se lhes afigurem desencorajadores, lembrando augúrios de desordens, advertindo-os às incertezas do caos. Apesar disto, indiferentes, tocam a vida de forma desassombrada, com um humor revigorado – como se novos fossem , luzindo néscios - ao exporem um brilho de envernizado recente. São seres bárbaros..., e, no entanto são muitas vezes vítimas da barbárie.
              Falando em barbárie, esta tem nos acompanhado pelos séculos sem fim, desde os mais ignotos tempos até os dias mais recentes,  época de documentação mais farta. A barbárie tornou-se companheira siamesa do homem, tornando-se muitas vezes impossível separá-los; evidenciando assim, a arrebatadora força que os atrai.
              O século passado deu-nos a falsa impressão de ter sido o mais violento, abominável e desprezível... Não só os últimos cem anos foram violentos. Todos os outros foram regados a sangue e misérias. O que houve foi o avanço da tecnologia e a facilidade de documentar-se o citado período. É tudo igual! Apesar de ter havido a primeira e a segunda guerra mundial, quando se usou pela primeira vez armas químicas e também executou-se sumária e covardemente multidões de viventes inocentes, com gases tóxicos com fins inseticida – como, se insetos fossem - ,  na mais impensável das atitudes. Desmantelou-se a tênue harmonia que impedia que atravessássemos os limites da ignorância para os domínios da bestialidade, do demoníaco; no entanto, nada nos garante que os tempos antigos tenham sido mais pacíficos. Usou-se, todavia, um novo engenho de matar: a radioatividade! Esta energia desmedida, liberada pela fissão nuclear, mata imediatamente; e mata também a médio e a longo prazo.  Matou, entretanto, de roldão, alguns resquícios de inocência que dormia latente na alma feroz do ser humano.
               Não acabou por aí! A violência continua..., esta praga nefanda!...

   *    *    *  
   Os bárbaros de minha terra não são assim tão violentos. Na maioria, são abrutalhados, trogloditas; alguns dementes... Dignos de pena, risotas, escárnios..., raramente, dignos de vinditas. Apuremos:
   Um jovem “botador d’água” conhecido como Manuel Bernardo, exercia essa profissão nos tempos nos quais não existia água encanada do serviço de saneamento básico, nos idos de cinqüenta e sessenta.
  Andava, por vezes, aliviando a carga dalgumas fossas sépticas, mesmo que esta não fosse a sua principal atividade, mas que a esta se somava: a sua sobrevivência. Aquele indivíduo era um sofrível jogador futebol nas horas vagas. Muito cheio de gingas e firulas improdutivas, granjeou com isto a admiração e a gozação dos seus contemporâneos. Achava-se muito parecido com Quarentinha, à época centroavante do Clube Botafogo de Futebol e Regatas. Não faltava quem lhe desse  esse tipo de corda... Ele acreditava.
 Quase baixo de estatura, era, todavia fornido, parrudo, “torado no grosso”. Apesar de ser analfabeto, era fluente; com um palavrório arrevesado lesava aos crédulos e simplórios, pois dava, com isto, o entender de ser o que não era.
 Manuel herdou, dalgum amigo bem sucedido, um paletó de linho diagonal com o qual fazia lúdica figuração nas festas de padroeira e ou natalinas. Muito pronto e apessoado, exercitava o seu conversê em ambientes onde era pouco conhecido, identificando-se como sendo o Sr. Carlos Alberto dos Santos, filho do prefeito do município.  Esse Cantínflas caboclo tinha a força de uma “saúde de ferro”. Talvez por isto, exagerava nas extravagâncias que fazia com o seu próprio organismo: Comia feito um quadrúpede! Bebia qual um urso!...
 Nos dias de eleições, quando os eleitores campesinos deslocavam-se da zona rural para exercerem o seu dever cívico na sede do município, era comum os chefes políticos lhes patrocinarem o almoço. Manuel Bernardo, mesmo não sendo eleitor, visto ser analfabeto, e nem ser morador do campo, dava o seu jeito de descolar umas três ou quatro ordens de almoço, e as utilizava todas. Não raro, pessoas assistiam àquele “animal” comer numa bacia de lavar rosto, pois as dimensões de um prato seriam insuficientes para satisfazer a sua gula.
- Mané!... Um dia destes, você estoura..., você morre, Mané! – Advertiam-no alguns conhecidos.
- Eu garanto qui num vô dar trabalho a ninguém! – Rebatia Manuel.
 Realmente, algo parecido aconteceu:
 Quando aquele pequeno titã percebeu fugir-lhe a saúde da juventude, provavelmente devida à tísica que solapava àquela formidável fortaleza humana, não hesitou:
             Enforcou-se em um punho de rede de dormir...

             Este é um dos lados trágicos da miséria.

              Natal-RN, 22 de março de 2011.
                         Gibson Azevedo.

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