quinta-feira, 25 de março de 2010

Liberdade na Feira livre.

Aqui vão, caríssimo leitores, com muito orgulho, partes de um texto que cuida das minhas reminiscências. Leiam-nas e... sintam-nas:

Liberdade na Feira livre

Não era dia de festa, mas era como se fosse, pois tratava-se de um sábado dia da feira da principal cidade do Seridó; e complementando esta maravilha, as escolas não funcionavam nestes dias. O sábado dava a impressão de iniciar mais cedo que os outros dias e antes do romper da aurora, começava um frenético movimento invadindo a pequena urbe. Ao nascer do sol, já se instalara nos pátios e nas ruas principais, meio que de improviso, uma mini cidade dentro da cidade propriamente dita. Todo tipo de barracas, bancas e toldos, num colorido louco, com a finalidade de minimizar os efeitos tórridos dos inclementes raios solares, tão comuns naquela região, emprestavam ao centro de Caicó o aspecto de um mercado Persa. Desde cedo, ouvíamos com prazer, ruídos de muitos caminhões, camionetas e jeeps, tropéis de burros e cavalos. Ouvíamos também, o som característico dos carros de mão; não estes usados na construção civil, e sim, aqueles de madeira com quatro rodas e volante, que ao se deslocarem sobre as pedras do calçamento das ruas, davam um toque especial à sonoridade das feiras nordestinas. Nas ruas mais afastadas do centro ficava a feira de animais, onde trocavam-se e vendiam-se: asnos, muares, equinos, bovinos, ovinos e caprinos. Também, galinhas! Quando terminava a feira, esta rua ficava cheia de detritos e dejetos, provinientes das rações, suores, fezes e urinas destes animais, impregnando o ar com os odores característicos de cada espécie...

... A frente daquele Centro comercial (o Mercado Público), era o local preferido dos propagandistas de feira, com os seus alto-falantes - os populares "bocas de ferro"- de sons estridentes, com muitos chiados e uma microfonia infernal. Alguns destes profissinais ficaram famosos, como foi o caso de Viramundo; grisalho, de baixa estatura, com seu chapel de abas curtas, óculos de lentes esverdeadas, barba bem feita, bigode fino e bem aparado, camisa de mangas curtas ensacada por dentro das calças e sapatos social. Parecia ser oriundo do Brejo Paraibano, mas, com certeza pertencia ao mundo. Era um sujeito desininbido, de verve fácil; muito embora derrapasse, vez em quando, num português de poucas palavras. Se fazia entender perfeitamente com os matutos, e para eles falava horas a fio, sem demonstrar o menor cansaço. É provavel que viam-no como sendo um deles - só que, mais sabido -, daí vinha a credibilidade que Viramundo gozava junto a essa gente simples. Era motivo de orgulho: ver um matuto tão desenrolado! No ramo dele, não haviam competidores à sua altura. Chegava à feira cumprimentando a todos; - de fato, conhecia muitos deles - abria uma de suas malas onde continha vários maços de folhetos de literatura de cordel, com várias estórias, como: a chegada de Lampião no inferno; os milagres de Padim Ciço; os poderes de Frei Damião; as pelejas do cego Aderaldo; e tantas outras que se perderam no tempo. Viramundo vendia todo tipo de garrafada, óleo de baleia, banha do peixe elétrico, anis estrelado, sabão medicinal, pedra para retirar veneno de cobra e uma infinidade de bugigangas, que, na sua verve, servia para curar a maioria das doenças.
Maleitas, verminoses, amarelão, espinhela caída; fraqueza no corpo de homem com pouca animação pra mulher; e de pessoas que quando se sentam faz: ai!; e quando se levantam faz: ui!; quando batem de um lado da barriga, é um pandeiro!; e do outro lado, é um zabumba! Tudo isto, as garrafadas de Viramundo curavam. Ele vendia de tudo; até candidato a deputado estadual. Certa vez, ajudou com o seu talento a eleger o Dr. Milton Aranha Marinho, participando ativamente da sua campanha política. Viramundo marcou época em Caicó, escrevendo um capítulo de destaque nos espaços livres das feiras...

... No Sábado, as pessoas da zona rural "davam as caras", praticamente dobrando a população daqueles arruados. Somavam-se também, pessoas que vinham de outros municípios e outros estados, trazendo suas diferenças nos usos e costumes, embora fossem todos Nordestinos. Bem, era assim uma feira livre no Seridó, nos bons anos de inverno da década de sessenta; o que pouco diferia das feiras da idade média em outras partes do mundo.

Vários episódios acontecem nas feiras livres. Alguns, ficam gravados para sempre na memória do povo do lugar:
Contava-nos Celso Ferreira, que no final da década de cinquenta, passou por Caicó o famoso Circo Nerino, que contava com grandes atrações e números com diversos animais Africanos. Até hoje se comenta muito sobre aquele circo...
Aconteceu que, num Sábado, seis meses depois de o circo ter ido embora, um sujeito que possuia um Sítio perto do Campo de aviação, veio fazer a feira na cidade e trouxe como companhia um cachorro valente, para tomar conta do cavalo enquanto ele estivesse fazendo as compras. Ele amarrou o cavalo no descampado onde haviam armado o circo; no local onde ficaram estacionadas as jaulas dos leões e onde, evidentemente, tais feras faziam as suas necessidades. O cavalo deu uns dois espirros e aquietou-se; o cachorro, entretanto, ficou com os pelos todos eriçados e soltou um misto de uivo e gemido, de um resultado sonoro terrível, pouco comum para os cães. Esvaziou, de imediato, o conteúdo do seu intestino e disparou em tresloucada corrida na direção da zona rural. Dizem que, nunca mais foi possível convencê-lo a acompanhar o seu dono, em novas caminhadas até ao centro da cidade. Ficava irredutível e não vinha. Acredita-se que, no momento que ele sentiu o odor da urina dos leões, mesmo estando vencidas há seis meses, reconheceu, com um susto medonho, tratar-se de animais muito ferozes.
* * *

Os dias de feira infelizmente chegavam ao fim. Com o fim da tarde, vinha a noite trazendo como companheira uma desagradável ressaca, prenunciando os desenxabidos e mortiços Domingos, em nada comparáveis à viva agitação dos dias anteriores.

Naqueles dias era, extremamente bom ser um menino...




Natal-RN/Nov./2000.
Gibson Azevedo da Costa - poeta.

2 comentários:

Poeta do Penedo disse...

Meu caro Gibson
aqui nos retrata mais uma deliciosa crónica, retirada ás memórias da sua meninice. Não sei se essas feiras se mantêm no Brasil. Aqui, a feira que nos apresenta nada tem de diferente com as feiras que ainda hoje acontecem, um pouco por todo o nosso Portugal, feiras de sabor bem popular, em que produtos tão variados como pronto-a-vestir, roupa interior, tigelas de barro, cebolas ou frangos são apregoados e vendidos. É uma tradição que, felizmente, respira saúde. Em cada concelho existem várias, que por norma são mensais. E depois acontecem as feiras de cariz lúdico, com os carróceis, os carrinhos de choques, as montanhas russas, os combóios fantasmas, eu sei lá. Neste momento decorre em Aveiro uma feira, que tem o nome de Feira de Março, e que provavelmente será a feira mais antiga do mundo. Este ano decorre a sua 574ª edição. Nela se pode comprar de tudo um pouco, nela se fazem grandes negócios, nela a pequenada encontra um paraíso de brincadeiras e divertimentos.
Os seus relatos de infância formam quadros extremamente pitorescos e deliciosos. Porque não fazer uma compilação deles? Talvez o Brasil agradecesse.
Um grande abraço deste seu amigo.

Gibson Azevedo disse...

Caríssimo Fareleira Gomes! Somos uns felizardos por ainda existirem as feiras livres. Mesmo com o advento dos supermercados e dos shopping-centers, parece-me que, esta iniciativa popular que nos acompanha desde a antiguidade, readquire mais vigor a cada dia. Talvez, seja m o contato direto com o cheiro do povo, seus anseios, suas alegrias e seus medos, que nos façam procurá-las nos logradouros onde as mesmas acontecem periodicamente. Ainda bem que elas existem!...
A cidade de Paris não permite a instalação de supermercados na área do seu município. (Muito bem pensado!...)
Um forte abraço deste seu amigo.

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