O arteiro de sempre
Infelizmente não
dispomos de nenhuma foto deste ilusionista da palavra e dos gestos conhecido
como Moscôro, natural da cidade de Jardim do Seridó. É provável nunca haver
existido algum destes documentos gráficos, um instantâneo fortuito, por mais
rudimentar que fosse.
![]() |
Ariano é muito mais severo com os homens cultos - letrados |
Segundo o grande
mestre Ariano Suassuna essas figuras populares que se comportam de forma
ardilosa e escorregadia não merecem maiores censuras de nós homens letrados e
que, com certa contumácia, cometemos os maiores crimes. Estes homens nascidos
do âmago do povo, segundo ele, cometem alguns pecadilhos e descuidos como forma
de sobrevivência. Bastante diferente dos homens doutos que conscientemente se
locupletam com contumácia da pecúnia alheia, sabendo perfeitamente de todos os desdobramentos
deletério advindos destas condutas criminosas.
O grande Ariano adverte, todavia, que nada justifica uma conduta
inadequada, mas quando um homem destes – homem do povo – no seu viver em
constante apreensão em conseguir as condições basilares necessárias à sua
sobrevivência comete algum pequeno embuste, deveria ser levemente apenado ou
não existirem, nestes casos, pena alguma.
Concordo com o mestre.
![]() |
Ariano Suassuna - nova versão de "O pensador". |
Moscôro era um moreno
escuro, magro, “espilongado” talvez devido a uma dieta alimentar incerta, vivia
a dar pequenos golpes em alguns bodegueiros e pequenos comerciantes daquele
pequeno arruado. Alguns destes diziam, duvidando da sua esperteza: “eu quero
ver esse cabra sem futuro me enrolar... Tá, eu quer ver!...” No entanto, aos
poucos, o citado dissimulado foi engabelando a eles todos.
O empresário
rural Geraldo Dias costumava, nos seus vagares diários, passar pela mercearia
do amigo Cícero Henrique, mais conhecido por Ciço Pequeno, para trocar um
dedinho de prosa e degustar prazerosamente algumas bicadas de boa cachaça. Por
isto e por outras, gozava de grande prestígio naquela pequena urbe. Era um
homem confiável, de conduta ilibada. Certo dia, em conversa na citada mercearia,
ele comentou que viajaria tal dia ao Rio de Janeiro no intuído de visitar
alguns parentes que por lá residiam. Os ouvidos atentos de Moscoro captaram,
súbito, àquela mensagem, já imaginando como poderia lucrar com aquele
acontecimento. – “Viaja qui dia, cumpade Gerarrdo?” – perguntou, à toa, aquele
conhecido popular, como se quisesse somente puxar conversa. Quando obteve a resposta desejada,
augurou-lhe uma boa viagem, e guardou disfarçadamente aquela informação.
No dia da
viagem, o citado malandro passou pela casa de Geraldo e se informou de Dona
Rosita, sua mulher, se ele havia realmente viajado. Tudo limpo, o homem
viajou...
Estava Ciço Pequeno
na sua loja, atarefado no seu mister de bem servir, quando chegou Moscôro muito
esbaforido e triste porque “ cumpade Gerarrdo” não havia deixado nem os
mantimentos e nem o dinheiro para comprá-los. Como era que ele e os
companheiros iriam se manter, trabalhando na caieira que eles estavam queimando
lá no “Pau ferro”, sítio do conhecido Geraldo Dias? Assim não ia dar pra manter
o fogo aceso, não! – comentou. O
comerciante hesitou de início, mas enfim perguntou: Mascôro, é muita coisa o que
vocês precisam? “É não, cumpade Cíço, é
só três quilo de feijão, dois de farinha, três quilo de bulacha, quatro
rapadura, um de café, duas caixa de fosco e um lito de gás” (querosene) –
precisou, sem alardes, o conhecido embusteiro. De posse da mercadoria
acondicionada em um saco de tecido, ganhou, Moscôro, o “oco do mundo".
Passado
alguns dias que Geraldo Dias havia retornado do Rio, tendo voltado a sua rotina
diária dentro da qual, com sabemos, sempre visitava a loja do amigo Ciço
Pequeno, que, intimamente, estranhou o amigo não agradecer o obséquio dele de, na
sua ausência, haver fornecido aqueles gêneros de primeira necessitada e nem
falar em saldar àquela pequena dívida. Perdeu a paciência e cobrou a despesa
que Moscôro, em seu nome, havia contraído ao seu estabelecimento.
Cumpadre
Ciço, Moscôro não está trabalhando pra mim, não! Nem nunca trabalhou. Ora se eu
tenho serviço para um Cabra preguiçoso como Moscôro!... – Desabafou Geraldo e
soltou uma sonora gargalhada ao perceber que o amigo comerciante havia sido
vítima de mais “enrolada” daquele conhecido e manhoso encapetado.
Aquele
nêgo me paga! Ele que me aguarde!... – ralhou, o honrado Cícero Henrique,
indignado por ter sido envolvido por aquele trote fula.
Já
decorria algum tempo sem que Moscôro fosse avistado por aquelas bandas, até que,
finalmente Ciço Pequeno conseguiu dar uma sonora descompostura no evasivo e
fugidio farsante:
Você,
cabra-de-pêia, não tem vergonha de me comprar fiado usando nome e a confiança
outros? Seu velhaco safado!... E agora, o que é que você tem para me dizer, seu
merda?... – indagou possesso, o ludibriado comerciante.
“Ôôô... cumpade Ciço Piqueno, soschtô!, um nêgo véi tão antigo no cumerso
cuma você, veterinaro no assunto, inda num se acustumô cum essa tá de
tramenha?”- respondeu com a maior desfaçatez, aquele “destacado” dos pequenos
golpes.
Este personagem já se finou com certeza... O tempo nos consome a todos... No entanto,
este causo é por demais conhecido naquele núcleo populacional do Seridó
norte-rio-grandense. Que Deus o tenha!
Natal-RN, 26 de fevereiro de 2013.
Gibson Azevedo – poeta.