segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Ritos fúnebres - Funeral de Matulão.

Aqui, caros leitores, exponho partes de um texto, concebido, há alguns anos, por este seu amigo de pouco pensar:



...Nas terras do Seridó, numa dobrinha esquecida do mundo, num lugar conhecido antigamente como Villa Conceição, vivia, e vive um povo de características interessantes. São indivíduos que, apesar de pertencerem a famílias diferentes, guardam semelhanças profundas; terminam por dar azo à imaginação; levam-nos a supor que tais pessoas, originalmente, nas raízes, pertenceram a um mesmo clã. Aparentados são todos: pois que, mesmo não sendo da mesma família, apertam-lhes laços de apadrinhamentos antigos nestes estreitos relacionamentos entre compadres, e comadres, - veneráveis todos, aos olhos dos devotos afilhados. Estes laços são mais que suficiente para deixá-los semelhantes em muitos aspectos, até nos fisionômicos. Sem contar que, são sócios das mesmas manias; e consorciados que são, vivem a observarem-se, censurando-se mutuamente, a cavoucarem suas áridas vidas. Ali, naquele pequeno reduto humano, viviam, amigos e parceiros, dois populares, queridíssimos até pelas castas mais abastadas: Matulão e Lauvegídeo! Esses sertanejos foram forjados com a mesma tempera e talvez por isto, mesmo sendo homens fortes, apresentassem algumas imperfeições...
...Lauvegídeo, companheiro de copo de Matulão, farrista juramentado, era casado com Maria Calixto; negra quase retinta, conhecida como sendo uma das mulheres mais valentes e desbocadas que apareceram por aqueles rincões. Todavia era grande quituteira; habilidosíssima na arte de cozinhar; sendo muito requisitada pelas famílias ricas, para a elaboração de almoços e jantares comemorativos a algumas bodas e batizados. Possuía o seu charme. Era querida, mesmo tendo a língua solta.
Lauvegídeo, seu marido, era um sujeito branco, conversador, de rosto expressivo, com um bigode farto e uma vasta cabeleira; sendo sobranceiramente posudo, apesar de ser pobre. Aceitava, de bom grado, a comparação, que por molecagem lhe faziam, da sua presumível semelhança com o ex-presidente Jânio Quadros. Diziam: "que até a voz, parecia"! "E quando está com os cabelos desgrenhados, aí é que fica parecido", - sentenciavam alguns.
Lauvegídeo exercia a profissão de motorista, até quando a cachaça corroeu-lhe à credibilidade perante os proprietários de automóveis; para, daí em diante, dedicar-se às bebedeiras e "oras vejas" contumazes. Isto, em tempo integral!
O tempo passou e, implacável, fez suas vítimas. Uma delas foi Matulão... Com o passar dos anos, esse grande sujeito foi definhando, ao ponto tornar-se incapaz e, apesar de não ter a idade costumeira dos que de lá se servem, terminou seus dias no Abrigo Dispensário para Idosos, onde veio a falecer.
Foi um grande funeral; principalmente, se lavarmos em conta que se tratava de uma figura popular, que havia emergido do seio do povo. Talvez por isto, o clamor da populaça.
Lauvegídeo manteve-se nervoso naquele dia; deslocando-se constantemente do velório para o boteco, a papear com uns e bebericar com outros. Como resultado daquelas conversas, ficou motivado a dizer algumas palavras antes do caixão descer à sepultura. Nesta época, o costume de fazer discursos fúnebres, já havia caído de moda há décadas. Não faltou, no entanto, entre os colegas caneiros, quem lhe desse uma cordinha no sentido de animá-lo a executar esse feito. Diziam em uníssono:
-“Bibiu! você que era tão amigo dele, é quem tem de fazer o discurso!" "Se outro fizer, não vai ter graça nenhuma!"
E ele comeu a corda... Nem bem o cortejo fúnebre chegara ao cemitério, já os coveiros apeavam o caixão deixando-o a beira da cova rasa, pois defunto pobre não se enterra em catacumba. E aquela humilde urna funerária, colocada paralela ao comprimento da cova, recebeu as últimas mesuras sacras; com direito a respingos de água benta e tudo o mais. Quando os coveiros prepararam-se para efetuar o sepultamento propriamente dito, dando seqüência aos trabalhos, Lauvegídeo que se encontrava naquele momento na segunda fila, levou um leve empurrão de um dos companheiros de birita e, como já se encontrava indisfarsávelmente bêbado, tombou pra frente e estacou colado ao caixão. Aí veio, uma voz providencial, solta meio ao leu:
-"Não! É porque Lauvegídeo quer dizer algumas palavras!" 'Fale aí, Bibiu! O home era seu amigo! Fala home!"
Todo bêbado é atrevido e Lauvegídeo não se fez de rogado; ficou muito serio tombando levemente para frente e para traz, e, estando naquele lento balanço, tremelicava incessantemente a cabeça como se estivesse emocionado, para depois, numa lentidão irritante, levantar o braço colocando o dedo em riste e, usando de uma voz grave, súbita, entrecortada e babada, quase inteligível, disse:
-"Vou cumeçar pela a letra E!" Veio em seguida mais uns longos instantes de silêncio, quando ele, com uma dicção mais engrolada do que antes, continuou:
-“ÉÉéé... vergdade que você morreu mermo?" "Eu ainda num tô acriditano... Num é pussivi!”
Neste instante, saltou um sujeito respeitável e disse:
- "Êpa Lisbiu, pode parar!" "Covêro, interre o home; quêsse cabra tá é bebo!" "Era só o qui faltava!"
E assim, meio a certa balbúrdia, o querido Matulão desceu à sepultura...


Natal-RN, 09/Out./2003. GibsonAzevedo
P S: Estória relatada pelo estimado primo José Geraldo Medeiros da Silva.

4 comentários:

Poeta do Penedo disse...

A pouco e pouco, meu caro Gibson, vai-nos dando pinceladas coloridas e fascinantes sobre esse Sertão desconhecido (pelo menos para mim). Da sua pena já são não sei quantas personagens, que um dia foram de carne e osso, que vêm aqui fazer uma visita à vida.
Hoje foi a vez do Matulão e do seu amigo, que à sua maneira, lhe prestou uma sentida homenagem.
Não sei, mas estou em crer que fazendo uma compilação de todas essas preciosas memórias, nasceria uma obra votada ao sucesso.
Mesmo se tratando de um funeral, fui obrigado a rir.

Um grande abraço.

Gibson Azevedo disse...

Um funeral nada mais é do que um desfecho de um determinado ciclo. A vida humana, quando vivida com intensidade, na maioria das vezes é tragicômica, transferindo algumas vezes para o seu final, estas singulares características. Não pode ser diferente..., é inerente a humanidade. Rir e chorar, pensando bem, nem se diferem tanto. Depende muito do ângulo pelo qual se observa. Rir é saudável, mesmo em situações adversas, já nos alertou a consagrada cultura grega.
Um grande abraço deste seu amigo.

Unknown disse...

-Pôxa poeta Gibson !!! -Não deixaram o "homi" falá... É que ele é meio "Manoel de Barriano" -Ele desconcerta as palavras!!! -E em pleno final de cíclo do seu amigo Matulão.
Parabens pela narrativa amigo. ALAN AVILA

Gibson Azevedo disse...

Valeu Alan! Fico agradecido pela sua inestimável visita.
Forte abraço.

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