quarta-feira, 10 de março de 2010

O que a vida nos reserva.

Para vocês mais um pouquinho de prosa - janela, caminho às coisas antigas.


O que a vida nos reserva.


... Há dias que, surpreendo-me divagando do assunto e me vem a lembrança de uma senhora que povoou meu passado infantil. Chamava-se, Aureliana.

Era octogenária quando a conheci. Aos meus olhos de menino, ela tinha uma boa altura apesar do peso dos anos. Morena, muito magra, cabelos crespos totalmente brancos e mal arrumados com um lenço tosco de cor incerta e um reles rosário no pescoço. Sua pele, devido à idade e a luta pela vida, era totalmente enrugada, deformando, por completo, algum traço fisionômico que pudesse ter trazido de um passado viçoso. Lembro-me da boca funda, com raríssimos dentes abalados pela piorréia*, oscilando ao sabor da língua. Suas roupas eram de mulher antiga, surradas e só cobriam algumas partes do corpo. As mangas eram compridas e a saia descia bem abaixo dos joelhos, mas que deixavam ver seus pobres pés nos chinelos de arrasto. Trôpega, era, no caminhar, um exemplo de luta constante contra a força da gravidade e as lufadas do vento, oscilante, indo e vindo. Aí vêm as clássicas perguntas: será que esta criatura, já foi jovem? Poderia ter sido bonita? Teria, em outras épocas despertado, em algum jovem, interesses espontâneos? Alguma libido? Era duro de acreditar que isto fosse possível, observando aquele arcabouço humano carcomido pelo tempo.

Aureliana morava em uma casa arruinada que teimava em permanecer em pé, porem com o destino traçado de finar-se brevemente; e desta humilde morada, partia, todos os dias bem cedo, para o trabalho: a mendicância. Os vizinhos gostavam daquela anciã; e a tardinha, trocavam com ela um dedinho de prosa. As crianças tinham um relacionamento carinhoso com aquela senhora e faziam-lhe saudações rotineiras, como: "cordão de ouro!" E ela respondia: "cordão de Prata!" Para nós, crianças, ela era conhecida, como: "Aureliana, Cordão de ouro". Todavia, para as moças e rapazes, era conhecida, como: “bicho de um ôio só”. Seus olhos parcialmente inativos e a cegueira prestes a se estabelecer definitivamente, só conseguiam definir alguma imagem, na seguinte condição: um olho aberto e o outro fechado. Daí veio o apelido maldoso.
Certa vez, conversava na casa de uma vizinha, acomodada em banquinho, quando passou uma moçota e jogou a clássica pilhéria: "bicho dum ôio só!" De imediato, implacavelmente, Aureliana respondeu: "bicho dum ôio só, você tem no mêi das pernas!" Ela tinha aquelas respostas que só a velhice nos confere autoridade para emiti-las.

Aureliana não tinha filhos, se os teve não sobreviveram, daí o motivo da incerteza, se ela era uma "moça velha" ou viúva; "maninha", talvez. Não tinha filhos, porem sobrinhos, apareceram alguns...
Certo dia apareceu um sujeito falante e jeitoso, estatura mediana, cabelos pretos e lisos, bem penteado para trás à força de muita brilhantina, óculos de grau com armação escura de plástico e um bigodinho ralo, tipo “pavio de traque”. Bem, apresentou-se como sendo sobrinho de Dona Aureliana e manifestando o desejo de ajudar sua tia, colocando-a numa "casa de repouso". Na verdade, o que o sabido queria era vender o terreno da sua casa. Pois se tal casa era imprestável, era no entanto, muito bem localizada; sendo, a rua, relativamente central. Ao saber da intenção do sobrinho, revoltou-se, o que era natural, comentando em casa de D. Rita, sua vizinha: "se quiserím me butá num obrigo, num vô! Eu me omigo!"

O crápula conseguiu o intento e colocou a tia num destes tristes lugares, mas não logrou êxito na venda da casa - bem após a morte de Aureliana, podíamos ver o terreno onde houvera a sua morada, sem nada poder ser construído, por ordem da justiça, divido uma renhida briga de herdeiros.

O epílogo de um ser humano poderia ser menos triste, evitando-se tais constrangimentos. Não quero julgar, mas...

Natal-RN. Nov/2000.
Gibson Azevedo - poeta.

2 comentários:

Poeta do Penedo disse...

Meu caro Gibson
Caso no além se tenha acesso ao que, acerca de nós se vais dizendo, neste mundo, a D. Aureliana bem feliz estará por ver o seu nome atravessar o Atlântico e povoar, neste momento, o meu imaginário. E agradecida lhe estará, decerto. Como pequenas pinturas em aguarela, o Gibson vai-nos descrevendo esse mundo rico do Sertão brasileiro. Aureliana foi mais uma personagem que passou pelas suas excelentes crónicas de memórias.
Como lhe disse, o meu avô viveu no Rio de Janeiro entre 1920 e 1929. Talvez por essa razão, a sua segunda filha mais velha, minha tia, se chama Aurelina, nome que, por decerto, ouviu ser chamado aí no Brasil, como o desta senhora cuja descrição tão bem nos apresentou. Este nome «Aurelina», não é nada comum em Portugal.
Obrigado por este quadro de doçura, exceptuando o surgimento desse sobrinho interesseiro. Infelizmente é o que se vê mais hoje em dia.
Um forte abraço, meu bom amigo.

Gibson Azevedo disse...

Caro Fareleira Gomes, envaidece-me, por demais, o seu aprêço aos meus registros de infância. De uma época, local e personagens que não mais existem... Insistem, entretanto, em manterem-se vivos nos "Recuerdos", como diz Gabriel Garcia Marques, dos verdes anos de um homem maduro; acontecidos numa época que de tão pretérita, à revelia da minha vontade, já me escapam, assim como a água escoa entre os nossos dedos. Teimo em registrá-las.
Grande abraço e fique em paz.

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