segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Mais um causo

Mais um causo...

Este é parte de um texto de minha autoria concebido já há alguns anos. Torna-se oportuno apesar disto, pois torno-o público justamente nas festas da virada do ano; quando em minha terra comemora-se a festa de Nossa Senhora do Rosário – tradicional e antiga. Peço antecipadas desculpas, pois o mesmo é de conteúdo picaresco e nem sempre agrada às pessoas refinadas. São, todavia reminiscências telúricas, de uma época que se esmaeceu no tempo. Um pouco bucólica, como eram os vilarejos antigos. * * *

...Outras formas de jujus costumávamos ver, com freqüência, nos rudimentares "parques de diversões" que apareciam nas festas de padroeiros daquelas paupérrimas urbes. Existiam dois: um, muito pequeno, no qual giravam simetricamente uns quatro pares de cadeirinhas, sendo mais apropriados para crianças da primeira infância; o outro, o ancestral dos carrosséis, não tinha a graça, a luz, nem os movimentos, das máquinas modernas, dos atuais brinquedos giratórios. No entanto, este último era muito utilizado por "adultos feitos" e por moleques já "taludos". Todas essas máquinas carregavam no seu cerne os mesmos princípios básicos do arcaico galamate. Ou seja: faziam uso da força centrífuga ao girar em volta do seu próprio eixo! Outra semelhança, é que todos giravam movidos à tração animal: através da força do homem. Eram empurrados por humanos...
Os carrosséis antigos já não faziam barulho ao girar, pois rodavam suavemente apoiados em rolamentos bem lubrificados com graxa de petróleo, o que tornava esse movimento mais rápido e silencioso. Todavia, por serem movidos à tração humana - como já foi dito -, não possuíam engrenagens que movimentassem seus cavalinhos, pois se isto ocorresse ficariam pesados em demasia, para que, uma ou duas duplas de populares parrudos, pudessem girá-los. Separando uma tropa de cavalinho, da outra -- pois geralmente havia duas -, existiam bem afixado à madeira do piso, dois bancos para o desfrute dos casais, que por escolha ou receio, ou mesmo limitações do antigo vestuário, não optavam por montar nos referidos cavalos. Entretanto, num desses bancos, ficavam uns músicos mambembes, com um fole de oito baixos, um zabumba e um pandeiro, que faziam a alegria musical daquela engenhoca. Quando eles tocavam no momento que o carrossel girava, davam uma sonoridade singular, aos observadores estáticos, daquele primitivo brinquedo: à medida que o sanfoneiro se afastava ao passar, a intensidade sonora diminuía; e ao passo que eles se aproximavam, aquela fanfarra parecia ser mais aguda. E assim ficava... , naquele teimoso sobe e desce musical, que dava a tônica na animação daquelas datas festivas - alegria esporádica dos viventes simples daqueles arruados de antanho. Iluminação? , só com os fedidos candeeiros a querosene que pouco ou nada iluminavam, mas produziam umas sombras bamboleantes, de aspecto fantasmagórico, inesquecíveis!
Na noite de natal ou na virada do ano, ainda é possível, com um esforço quase mediúnico da memória, - na sensação de frenético burburinho, que ao sabor dos doces seco e dos ananás, e dos cheiros dos abacaxis e dos seus aluás, das aguardentes, e da pólvora queimada dos rojões espocados -, lembrar de dias que já foram bem presentes, em alguma época da odisséia humana. * * *

Numa destas noites, Joaquim, filho do velho Hernitério, do sítio Buriti no município de Jardim do Seridó-RN, veio à rua pras festas do final do ano; que prometiam ser de muita animação naquele bom ano de inverno. Tinham colhido uma boa safra e, o algodão mantinha-se em bom preço. Havia também, uma ingênua expectativa de um novo inverno regular, seqüenciando o bom período que se encerrava. Joaquim de Hemitério, como era conhecido, era um matuto arteiro e ardiloso, cheio de cavilação; pagava para ver um alvoroço, procurando, no final, dar a impressão que também era uma das vítimas ou, no mínimo, isento de culpas. Dentre as suas muitas habilidades, existia uma que consistia num domínio mental que ele tinha sobre o peristaltismo do seu estômago, podendo esvaziá-lo quando bem entendesse.
Pois bem, noite de festa, comemoração pela Cristandade do aniversário do nascimento de Jesus Cristo; Igreja aberta e a tradicional "Lapinha" muito visitada desde a boquinha da noite; foguetórios de hora em hora; preparações para a exibição do ensaiado Pastoril; muita gente na rua com roupa nova e sapatos em folha, rnoendo-lhes os pés, já maltratados com os inúmeros calos.
Joaquim saíra de casa muito cedo naquele dia. Era à tardinha... Caminhou até a igreja, fez, como era de costume, suas orações, e depois seguiu para observar e admirar as atrações, ditas, profanas. Passou por alguns bazares, deu uma parada no leilão, conversou com uns conhecidos e tentou namorar, sem sucesso, alguma moça junto ao parque de diversões. Depois de algumas idas e vindas pelos vários segmentos, daquela pouco costumeira agitação urbana, sentiu Joaquim, um pequeno enfado mesmo estando encostado na cerca de proteção do carrossel. Era normal que, àquela hora, aquele local estivesse abarrotado de gente a observar o desenrolar da diversão. Ali haviam pessoas vestidas com chitão de cores vivas - estampados - e paletós de linho diagonal, nos quais exageram no uso da "água de cheiro" ("cheiravam", em demasia). Farto, também, nestas ocasiões, era o emprego das brilhantinas...
De repente, como que movido pelo maldito, Joaquim lembrou-se que ficara em sua casa, na chapa do fogão, um alguidar de barro contendo uns dois litros e meio de leite gordo. Partiu dali apressadamente em direção à sua residência, e lá chegando foi direto à cozinha, onde encheu-se de leite até onde o estômago coube. Nem arrotou! Voltou imediatamente para o carrossel, onde comprou um bilhete que dava o direito à uma corridinha naquele brinquedo. Joaquim escolheu ficar sentado na extremidade do banco que corria por fora, e conseqüentemente, mais próximo à cerca de proteção onde ficavam, acotovelando-se, os curiosos. O carrossel começou a mover-se empurrado por Chico Catarina e Pedro Luminata, encarregados da tração daquela geringonça; a animação musical a cargo de Balôto, Sotinha e Nego Alto, com o repertório impagável do velho Severino Januário - das bandas de Exú -, e alguma coisa de Abdias, menino bom dos oito baixos - das terras da Borborema. A coisa ia caminhando muito bem. Coisa inocente... , até quando, Joaquim começou a representar a sua farsa:
À medida que o carrossel ia girando, aquele sujeito, com os olhos propositadamente estrábicos fruto de uma súbita vesguice, foi inclinando a cabeça para fora do círculo, ficando mais próximo do público. E assim, eis que de repente, escolhendo o local de maior aglomeração de observadores, despejou o conteúdo azedo e fermentado do seu estômago, maculando, com aquela mistura malcheirosa e nauseabunda, roupas e cabelos caprichosamente preparados para aquela bendita noite.
Quando finalmente parou o carrossel, na saída, juntou uma turba querendo moê-lo a pancadas, sendo, a custo, contidos; principalmente, no momento no qual o descarado Joaquim, com a cara mais ingênua do mundo, limpando a boca com um lenço, disse:
- Ah meu amigo! Eu num tive curpa..., eu injuêi!...
Natal-RN, 03/dez./2002.
Gibson Azevedo da Costa

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