segunda-feira, 9 de julho de 2012

Pirarucu (1ª parte).


                                                      Pirarucu (1ª parte)

    

                    Nos caminhos caprichosos do destino por onde temos trilhado, onde vagas lembranças sem um parecer exato, desbotadas, esbatidas, veladas, distantes..., agrupam-se em impensáveis conluios, donde, numa troca de memoráveis e até inconfessáveis momentos, readquire nova alegria cromática, novo viço - virtude das coisas novas. Parece que só nós, os latinos, temos estas características. Ou seja, qualidades saudosistas, emoções súbitas e fortes que, homens opacos e frios de outras culturas, num erro gritante de avaliação, consideram-nas reles pieguices.
                    Daquele mundo afastado e obscuro dos nossos primeiros anos de vida costumamos divisar através de lampejos fugazes, como se observássemos via algumas  entreabertas janelas da alma, um interior um tanto encoberto dos registros arquivados da nossa saga infantil. Adultos..., miramos para dentro de nós mesmos, furtivamente, como se cometêssemos , ao revirarmos as vãs quinquilharias do passado, o pecado dos pecados...  Tão somente por atualizarmos lembranças esmaecidas, guardadas descuidadamente em algum sótão antigo e lúgubre do nosso subconsciente. São coisas que acontecem espontaneamente, quando atingimos, com pouco encanto ou nenhuma graça, a idade madura. Entretanto, apesar disto, nestes momentos a nossa memória funciona a mil, à revelia da ordenação dos pensamentos, indiferente a nossa vontade.
                   É num destes momentos de alheamento – hoje, vivendo os últimos anos da minha quinta década -, que sinto a presença de cenas vividas há tanto tempo. Cenas estas, que mais parecem um “faz de contas” ou que foram histórias criadas e ligadas exclusivamente a outras pessoas. 
Velhas cercas de pedras, hoje restaram poucas.
                 Mesmo assim, vejo-me retornando do Colégio Diocesano Seridoense, onde cursava o ginasial..., o sol escaldante apesar do inverno rigoroso daquele ano, olhando para uma ancestral cerca de pedras (destas cercas, temos poucos remanescentes que sobreviveram ao advento do arame farpado) que se situava ao lado do Colégio, ligada ao Seminário para ser exato. Percebi, com surpresa, que havia muitas mantas de carne que foram salgadas e expostas ao sol, que, desidratando, secavam estendidas naquela pitoresca cerca de pedras. Este processo de conservar alimentos sempre foi muito usado nestas terras ensolaradas desde a chegada dos primeiros colonizadores. Consistia em desidratar totalmente a carne, salgando-a e expondo-a ao sol, de maneira que, depois de secas, acondicionadas, envolvidas e amarradas em esteiras novas de palha de carnaúba, haveria a possibilidade desses alimentos, assim armazenados, serem consumidos de forma saudável, vários meses depois. Todavia, ensimesmado, tentava adivinhar de qual animal seriam aquelas carnes, à mostra, naquele sol a pino. Solicitei a ajuda de alguns colegas mais experientes para satisfazer àquela minha curiosidade e natural impaciência, dos quais recebi a resposta que se tratava de carnes de pirarucu, peixe abundante em alguns banhados das partes baixas dos rios represados, e dos açudes cheios daquelas cercanias, nos idos de sessenta de invernos memoráveis...

                      Natal-RN, 09 de julho de 2012.
                            Gibson Azevedo - poeta.

Ps. Este texto foi escrito em 05 de julho do ano de 2002. Devo também dizer, que o pirarucu é um remanescente pré-histórico, pois este peixe respira tanta na água como fora dela por alguns minutos, e é um peixe tipicamente amazônico, só aparecendo em alguns acudes e rios do nordeste brasileiro, devido uma campanha feita na década de cinquenta pelo Governo Federal, de povoar com alevinos desta espécie os reservatórios de água existentes na citada região.

2 comentários:

poeta do penedo disse...

Meu caro Gibson
excelente texto, na forma e no conteúdo. E o seu texto vem ao encontro, completamente, do que eu sinto. A minha vida compõe-se de muitas memórias braço dado com o presente. E também eu, a faltarem-me quatro para os sessenta, já começo a ter um passado com alguma substância. No entanto não tenho qualquer pejo em regressar muitas vezes ao meu passado. E uma memória que preservo com avidez, diz respeito á minha infância, nos meus seis/sete anos, numa deliciosa aldeia nos arredores de Coimbra, chamada Barcouço, em que conheci a mais verde e viçosa horta de todas as que conheci. Tenho-a bem na memória. Até o seu cheiro guardo. Há pouco tempo, esse aroma, não sei porquê, veio-me ao nariz...e eu voltei a sentir-me pequenino.
Muito feliz por aqui regressar.
Um grande abraço deste seu amigo luso.

Gibson Azevedo disse...

São coisas antigas das nossas terras, que hoje tão somente existem na nossa memória. Memória dos meninos que fomos em outras eras...
Um forte abraço, amigo Jorge.

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