domingo, 13 de maio de 2012

Rojões e arrelias.


                                             Rojões e arrelias



                           Saudade mata a gente, como bem diz o sagrado povo simples na sua natural sabedoria, porém mata devagarzinho de forma quase imperceptível, fenecendo-nos aos poucos, um bocadinho de cada vez. Ao notarmos a sua ação deletéria, constatamos ser muito tarde para remediá-la. Não estamos nos referindo aos sentimentos que resultam das separações que a morte, inexoravelmente, nos confere. Não! Trata-se aqui das insignificâncias que vivemos no dia a dia, quando nunca suspeitamos que esses fatos “primos chegados do nada” possam, algum dia, trazer-nos este sentimento inconfundível de perda, que nós, os descendentes diretos dos portugueses - como nenhum outro povo – chamamos de saudade. Alguns estão ligados aos sentidos: os odores, os sons, os sabores, as luzes; não é raro, estes se apresentarem de formas combinadas, como que mancomunados a nos entristecer no futuro com a falta dessas citadas insignificâncias. Quanta falta nos fazem os momentos únicos dos primeiros ensinamentos escolares?... E os primeiros contatos com a arte, com a ficção? As primeiras sessões de cinema, inesquecíveis e irretocáveis... As primeiras músicas, desde as flautas mágicas dos pássaros às inocentes cantigas populares, de imenso valor cultural às valiosas características inerentes a cada tribo, arruados – aglomerado humano... Os cheiros e sabores das frutas, das comidas, dos perfumes, da terra molhada... , até dos suores... E também o cheiro forte e irresistível do sexo!...(sobrevivência da espécie).

Foto muita antiga do velho Cine São Francisco.
                            Por falar em cinema, conheci, nas décadas de sessenta e setenta do século que findou, várias salas de exibições cinematográfica, que não mais existem, na querida cidade de Caicó, paragem zelosa e terna aos meus dias de infância e adolescência. Eram elas: o Cine Pax (mais romântico e antigo), o Cine Alvorada (este já proporcionava uma tela Cinemascope aos cinéfilos daqueles tempos), o Cine São Francisco (com a novidade de possuir um inovador mezanino) e o Cine Rio Branco ( o maior deles, quase um Teatro). Todos, sem exceção, perderam-se no torvelinho do tempo e passaram a existir somente nos interstícios indeléveis das lembranças... O cinema era, naqueles dias de atraso provinciano, o maior desaguadouro dos sonhos inocentes das várias gerações de jovens daquelas décadas inocentes. O teatro, tão explorado por pessoas letradas, instruídas, daqueles sertões ignotos, em outros tempos mais remotos, agora já não encontrava mais  ecos de interesse e perdera-se no esquecimento da falta de pratica. A televisão não passava de uma grosseira e estranha invenção que nada nos proporcionava, a não ser alguns nocivos  chuviscos visuais. Era, então, o império único do celulóide da sétima arte, que reinou absoluto,  por decênios, no lazer simples daquelas gentes. É verdade que o rádio já dava com vigor às suas caras, havia bem mais tempo. Era outro atrativo, mas não interferia na magia dourada do cinema.
                          À frente das últimas casas de exibição de filmes em Caicó, por ocasião das sessões diárias ou nas domingueiras, acostavam-se, provisoriamente, sempre alguns vendedores ambulantes com suas guloseimas irresistíveis às vistas das crianças e adolescentes.
O Cine Rio Branco - o último deles.
                   Alguns deles tornaram-se famosos nos seus ofícios. Foi o caso de um cidadão conhecido por “Brejeiro”(oriundo provavelmente de algum lugar do Brejo paraibano), que caiu no gosto da meninada com o seu carrinho de confeitos, com o seu linguajar simpático e meio cantado - a sua verve solta de homem simples. Brejeiro era um sucesso com o seu conversê arrevesado. Ele, segundo alguns comentários, também obteve êxito como chefe de família, tendo educado os filhos a contento, com os frutos da decência deste seu honrado mister. Nunca mais o avistei, desde mil novecentos e sessenta e oito, época na qual minha família transferiu-se para Natal, a cidade capital do nosso Estado. Não sei se ainda vive. Creio que não. Ele já teria, sem dúvida, uma idade demasiadamente avançada. Vive sim, na memória de pessoas como eu que o vejo sempre nas minhas reminiscências, vestido com suas roupas simples, roupas sertanejas, e seu inseparável par de alpercatas e o inconfundível boné.
                            Brejeiro era, na sua essência, sobretudo, um sobrevivente. Lembro que, certa noite, por volta dos festejos juninos, já  que encerrara-se a sessão de cinema por volta das nove e meia da noite, ele instalou-se com o seu carrinho frente a sede do Círculo Operário de Caicó, que ficava próximo ao Cine São Francisco, local onde realizava-se um animado arrasta pé  para deleite das famílias da classe trabalhadora de antanho.
                             Os caicoenses, como a rigor os demais sertanejos da região do seridó norteriograndense ou paraibano, são muito chegados às mesuras de um trote, a uma picardia. Por isto mesmo, alguns minutos depois que Brejeiro instalou-se com o seu negócio frente àquele banzeiro “coalhado de gente”, apareceram, vindos ninguém sabe de onde, os primeiros buscapés a ameaçarem a sua função com suas labaredas desordenadas de fogo a entrançarem nas rodas do seu carrinho e nas suas pernas, momento no qual ele sapateava tentando se livrar daquele incômodo gritando: Ói cabra!!!!
                         Quá-quá-quá-cá-cá!... Risadas à solta. A populaça se divertia...  Gargalhavam. Ele não teve sossego. Lá pras tantas começaram a jogar-lhes rojões. Naquele momento, ele percebeu que não teria vantagem alguma se teimasse em permanecer ali. Quando já se preparava para “bater em retirada” arremessaram, em sua direção, um último artefato que notadamente ainda vinda consumindo o pavio, momento no qual ele teve, instantaneamente, a infeliz idéia de rebatê-lo com um chute. Ora! O acaso não iria se fazer de rogado e cumpriu fielmente o seu papel: no momento que ele tocou com o pé na bombinha...  Buuuuummmm!!!!! Ela explodiu, chamuscando-lhe os dedos e as arreiatas da surrada alpercata.   – Fiie duma iégua!!! Apareça se for homi, cabra safado! – bradou Brejeiro, já com uma pouco amistosa peixeira em punho...



    Natal-RN, 13 / maio / 2012.
  Gibson Azevedo – seridoense.

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