O voo final do guriatã
Guriatã macho. |
É para
deixar-nos mudos, atônitos, pasmos, ao depararmo-nos com a essência da força
das verdadeiras manifestações culturais; mormente, quando se apresentam nas
ocasiões mais inesperadas; assim mesmo, como respondendo a um chamamento forte
como ao canto das sereias – apelo, ambiguamente, cândido – somos envolvidos por
completo naquela magia de arte, como se condenados fôssemos a vivê-las
intensamente numa irrevogável sentença.
Bem, a poesia é a
arte das artes! Fácil é, justificar esta assertiva. O ser humano é o único
animal programado pela criação para evoluir dos sons guturais dos tempos
imemoriais e, finalmente, a muito custo falar. A palavra é um dom Divino – é
prazeroso, nisto, acreditar...
Jaime(o 1º de óculos escuro) num encontro com amigos. |
Adentrei, como
sempre faço todos os dias, à residência dos meus pais, com os quais, humilde e
honestamente, devido bons momentos e uns
dedinhos de prosa num impagável repasto matinal, quando deparei-me com um
convite para uma missa comemorativa ao trigésimo dia da morte de um grande
amigo: o poeta Jaime Filgueira. O convite era endereçado ao meu pai; fato que
justifica-se ao relembrarmos que eles mantinham uma fraterna amizade – na qual
viviam um sincero e excelente companheirismo – por dezenas de anos. Aquele
singelo folheto trazia, intrinsecamente, na estampa e nos caracteres muito da
sua inestimável pessoa. Folheto simples sem maiores alardes traduzia, no
entanto, a figura impar daquele homem; do poeta que cantou o seu tempo, à sua
terra, à sua aldeia. Era simples..., como simples são as cousas boas que se
eternizam na memória do povo. Jaime foi uma figueira que frondou e deu sombra e
frutos; foi amado – como são os poetas – pelos seus entes e seu povo. Moreno
alto, forte, de boa figura; dele emanava dulcíssima sensibilidade sedimentada
em pura bondade; trovador contumaz, contudo, sem ter a ânsia de produzir poesia
em grande quantidade. Produzia sim, quando boas musas gravitavam benfazejas
sobre sua cabeça e, faziam-no transmitir, a nós pobres mortais, sentimentos que
julgávamos inexistentes ou esquecidos, e que, profundamente, nos tocam a alma.
Nascido em trinta e um de dezembro de mil novecentos e trinta e quatro, filho
de família honrada de boa linhagem e numerosa prole, tendo sido educado sob os
domínios da fé em Nossa Senhora de Sant’Ana, mãe de Maria e, por adoção, dos
sertanejos. Este homem viveu, da sua terra, as tradições; vivendo intensamente
suas manifestações culturais, captando, das mais legítimas, o seu verdadeiro espírito,
aplicando-o no cotidiano da sua calma existência. Jaime, apesar de ser um homem
muito trabalhador, foi um boêmio, todavia sem ser piegas; como todo bom poeta
amava o ócio, muito embora, em excesso não o praticasse, pois laboriosa era a
sua vida de exemplar chefe de família. Cultivava, com a naturalidade do seu
relacionamento, as boas e duradouras amizades – sua maior riqueza, sem dúvida. A cidade de Caicó nada perdeu com
este seu filho, nem com sua morte – antevejo. Pois se esta terra cresceu
culturalmente com sua lira – em vida – ganhará de certo o culto crescente à sua
memória e a sua obra, a partir das exéquias dos seus restos mortais. Isto
testemunhará as futuras gerações. Notarão até sua presença física,
principalmente se observarem com paciência e cuidado, no alto dos cocares dos
coqueirais, o saltitar alegre de alguns guriatãs...
Os seus familiares,
por ocasião da sua morte – vinte e quatro de fevereiro de dois mil e dois –
vivendo irreparável perda, buscaram conforto nas suas poesias e escolheram,
acertadamente, uma glosa lírica de raríssimo bom gosto, onde os fortes
sentimentos brotam a cada palavra com tanta naturalidade, que impressionam
sobremaneira:
Trazendo na fronte os traços
De um sentimento profundo,
No louco circo do mundo,
“Todos nós somos palhaços.”
A rir com estardalhaços
Numa alegria fingida
Nosso porvir é descida,
A esperança irrisão
Em eterna encenação
“No picadeiro da vida!”
Jaime Paulo Filgueira - Poeta.
Jaime Paulo Filgueira - Poeta.
Procurando não
cometer blasfêmias ou heresias, julgo, com muita convicção, que poetas como
Victor Hugo, ou mesmo o maior de todos eles, o semideus François Villion,
sentir-se-iam, deveras, honrados em assinar uma obra de tamanha beleza.
Natal-RN, 26/mar./2002.
Gibson Azevedo – poeta.
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