terça-feira, 14 de outubro de 2008

De braços abertos e não era sobre a Guanabara.




No começo dos anos sessenta havia uma efervescência e uma expectativa enorme com relação ao desenvolvimento do nosso país. Alguns lugares, do território nacional, testemunhavam a possibilidade de mudanças na qualidade de vida do cidadão de classe média - classe social bem definida no Brasil daquela época. Até mesmo o proletariado vivia com mais dignidade. Regiões hoje empobrecidas, sem perspectiva alguma, eram, em passado não muito remoto, pujantes, vibrando de esperanças em melhores dias, de uma juventude sadia ciosa nos seus deveres caminhando a passos largos rumo aos seus ideais. A escola pública, servia de modelo para o ensino até dos colégios da iniciativa privada, com um professorado atuante honrando o bom nome da mais digna das profissões; ganhando salários que, se não eram os mais justos , não eram aviltantes como os atuais. Lembro dos concorridos concursos para a bolsa de estudos, que visava habilitar os estudantes carentes a freqüentarem os colégios particulares. Do lado econômico, percebia-se, até nas pequenas cidades, um movimento ativo no comércio, na indústria, por vezes incipiente, mas não menos promissor. Em suma, um animador volume de negócios. É preciso que se diga, que a população rural (campesina) era bem superior a população urbana. Que bom que era assim! Havia com isto, uma maior produção agrícola e um maior número de emprego, fixando o homem ao campo. Foi neste clima, que alguns "espíritos de porcos"*, alegando corrupções, desorganizações da sociedade e um perigo constante da não permanecia do Brasil no rol das nações livres, resolveram dar um malsinado golpe de Estado. Esta foi a maior desgraça que aconteceu com nossa terra, desde o dia do achamento*, feito dos portugueses nos idos de mil e quinhentos. Este assunto jamais se esgotará, e certamente, será melhor comentado em outra oportunidade,
No começo daquela década, havia porem, algumas situações e conceitos que continuavam intactas desde alguns séculos. Estes tabus, principalmente os referentes à honra, eram naquele tempo, impensável transigir. Por exemplo: o homem jovem ou maduro que mexesse* com moça de família, geralmente, pagava com a vida por tal imprudência. Se o homem fosse casado o caso complicava-se ainda mais, pois sendo solteiro e dependendo de uns acertos entre as famílias, o estrago podia ser parcialmente remediado. Arranjava-se um casamento às pressas, obrigando o meliante a reparar, a muque*, o erro cometido. Este desaforo, todavia, jamais seria esquecido pela família da moça e os nubentes para sempre banidos - nunca seriam perdoados. Viveriam juntos, porem renegados pela família - jamais abençoados. Se a moça se perdesse* com homem casado, geralmente terminava na zona*. Algumas eram proibidas de entrarem até nas igrejas. Isto era a verdadeira perdição. Algumas não suportaram a perspectiva de tamanha indiferença.
Lembro-me agora, duma manhã longínqua, de um domingo distante, na primeira metade do primeiro semestre, do ano de mil novecentos e sessenta e três, na cidade de Caicó. O rio Seridó já tinha descido com suas benfazejas águas, que represavam o rio barra nova, mais abaixo, no encontro dos rios, já fora do perímetro urbano. Já se prenunciava o fim do inverno*. Ali nas margens do Seridó voltadas para a cidade, num local próximo ao bairro do acampamento onde havia um amontoado de
palha de arroz*, foi encontrado, meio ao acaso, o corpo de um recém-nascido. Toda a população para lá se deslocou, só assim, acreditou-se que tal desatino pudesse acontecer com animais superiores, principalmente, com o homem. Era verdade, lá estava uma criança de poucos dias de nascida, do sexo masculino, gordinho, olhinhos baços, porem abertos, como se estivesse a observar o céu muito azul, manchado de nuvens brancas, daquela manhã seridoense. O que mais chocava naquela cena, eram seus bracinhos abertos, na mesma clássica posição das pinturas religiosas, que mostravam o menino Jesus na manjedoura, retratando o seu nascimento. Aqueles braços estavam abertos não para abençoar e sim para pedir ajuda, pedir amparo, proteção, etc. Onde estavam os homens de bem, que não o protegeram? Onde estavam as entidades de classes e as religiosas, que não deram proteção e amparo, a esta moça que sucumbiu ao implacável desejo sexual, obedecendo a ordem imperiosa dos hormônios, inerentes aos jovens, num impulso reprodutivo involuntário? Não havia ainda se popularizado a pílula anticoncepcional. O peso da ignorância, de, no mínimo, mil anos, caiu nos frágeis ombros desta pobre moça, ao ponto de, sem escolha, sacrificar sua cria.
A sociedade organizada se manifestou em todos os sentidos depois do fato consumado. Assim que um cão vira lata* de faro* aguçado, remexeu na palha de arroz encontrando o pequeno cadáver, ocorreu como se alguém tivesse mexido num vespeiro. A polícia começou a investigar, de emergência, os possíveis culpados. Investigações, que se mostraram improdutivas, com o passar dos dias, meses e anos, quando não se chegou a nenhuma conclusão. A igreja, através dos seus meios de comunicação, procurou de todas as maneiras, persuadir a população a dedurar* essa pobre coitada, que, pelo seu crime, só era digna de pena. Lembro que alguns dias depois houve uma comemoração no auditório do Colégio Santa Terezinha, alusiva ao dia das mães, quando, num determinado momento, foi facultada à palavra. Deste momento, lembro-me com memória fotográfica; apresentou-se, como era de costumes nestas ocasiões, um prodígio da oratória daquela época: o estudante secundarista do Colégio Diocesano Seridoense - François Silvestre.
François Silvestre, hoje Advogado, é o mesmo que publicou excelente livro de contos - Rio de Sangue - no começo dos anos oitenta. Naquela época, François já impressionava muito com sua maneira desinibida de falar em público, apesar da pouca idade. Talvez contasse com dezesseis anos de idade. Branco, de baixa estatura, um pouco rouco, imberbe e com uma basta cabeleira. Discursava como gente grande. Pois bem, foi-lhe concedida à palavra. François, sempre muito eloqüente, desmanchou-se em elogios, como era natural que fizesse, a todas as mães do mundo independente de cor, raça ou credo e muitas outras alusões apropriadas ao dia das mães, que não me recordo no momento. Foi aí, como todo bom "discursador"*, que apelou para o lado emocional do assunto, abordando a maternidade como coisa santa, como de fato o é. Lamentável, porem, foi quando citou o caso ainda recente, execrando ao máximo àquela mãe desnaturada, que não tinha nem a coragem de confessar o seu crime. No final, aplausos e benção, etc., etc. Penso que aquele adolescente, quase menino, empolgado com sua própria verve, evitou discorrer mais profundamente em assunto tão delicado, preferindo, talvez por inexperiência, seguir os ditames daquela época.
Na minha modesta opinião, aquela desventurada jovem, será julgada todos os dias que restarem em sua triste vida. Será um julgamento sem a ficção dos
Tribunais de justiça. Será um julgamento feito diuturnamente, na intimidade de sua consciência. Quem somos nós para julgá-la? Oh Deus! Por que, depois de tantos anos, veio-me a lembrança um assunto tão triste?
"Quem estiver isento de pecados que atire a primeira pedra!"
Natal - RN/Nov/2000. Gíbson Azevedo da Costa.

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