terça-feira, 14 de outubro de 2008

Quase um "Grande Otelo".






O Seridó é uma região onde aparece, ciclicamente, personagens que são dignas de figurarem em obras de alguns satíricos famosos, como: Bocage, Rabelais, Felini, Chaplin, etc. Na primeira metade do século passado, nasceu naquelas bandas, uma figura, que era ao mesmo tempo, surrealista e um afetado romântico. Numa retrospectiva da saga humana, notamos a presença, por vezes amigavelmente acolhidas, de pessoas que possuem a necessidade compulsiva de mentir ou contar vantagens. Começam, sem maiores pretensões, a discorrer sobre o mais banal dos assuntos e em determinado momento, surgem como se fossem pragas de gafanhotos, os mais estapafúrdios "causos”. E aquilo é, como dizem, como moça quando perde a virgindade. Fica sem controle, como num samba do crioulo doido, fica desmedidamente sem controle. “Moça quando perde o cabaço, fica dando mais que chuchu na serra”, vaticinam os moradores mais antigos desta região. Assim também é o mentiroso. A princípio mal fala, mas age como carro que só pega no tranco, depois que pega, vai embora, célere, numa boa performance. O mentiroso só encontra dificuldade de soltar o primeiro causo, porem, o segundo vem com a desenvoltura de quem já conhece o caminho.
Voltando ao assunto, Seu Manoel de Josino nasceu no Seridó na primeira metade do século passado. Moreno claro, de estatura mediana; quase baixo, cabelos de nervosos a enrolado, olhos grandes, escuros e aboticados, bigode bem aparado, lábios grossos, dentuço do queixo fino. Este é, a grosso modo, o aspecto fisionômico deste grande personagem.
Em meado da década de quarenta, do Século vinte, quando o Brasil se envolveu com a Segunda Guerra Mundial, Manoel de Josino serviu na Força Aérea Brasileira, na Base Aérea de Parnamirim. Nesse período manteve contato com os oficiais e praças americanos, Tendo aprendido o oficio de mecânico eletricista, exercendo-o com muita eficiência. Assim como, aprendeu a falar com desenvoltura o idioma dos galegos, ou seja: inglês de beira de cais. Gostava, quando embriagado, de fazer discursos inflamados, com duas características: eram feitos em inglês e o espectador da primeira fila, era obrigado a escutar, o tal discurso, aparelhado com um guarda-chuva se não quisesse ficar todo encharcado de saliva. É bom que se diga, que tais discursos só aconteciam por insistência da canalha de plantão.
Seu Mane de Josino era um bom mecânico, e sua oficina, sempre muito procurada pelos mais diversos proprietários de carro. Sua clientela variava muito com relação ao status social; ia desde os humildes proprietários de antigos carros de praça - táxi - aos automóveis de luxo, de propriedade de ricos empresários. Atendia a todos com a mesma desenvoltura e eficiência, sempre com um bom papo a disposição do cliente. Alem disto, é honesto dizer, tratava-se de um homem muito dedicado a família; sendo bom filho, pai e esposo. Nunca se afastou da sacro-santa missão, de, dentro do possível, prover o seu lar das coisas essenciais, priorizando-as, para atendê-las com segurança. Alem disto, desfrutava de um ciclo de amizade relativamente grande, que contava com pessoas de todo tipo, todavia com as mesmas características: eram, a rigor, pessoas ordeiras, pessoas de bem. Isto no Seridó conta muito.
Num dado momento, estava seu Mane, trabalhando num alternador de um carro, quando chegou um cidadão ausente de Caicó havia algum tempo, cumprimentando-o efusivamente. Papo vai, papo vem, o recém-chegado perguntou: Manoel, como vai a
família? Foi a deixa que ele estava precisando. Parou o serviço que estava fazendo, fez um misto de pose e mesura e respondeu com a voz de taboca rachada: vão muito bem, obrigado. O mais velho, o Rui, é Economista. Hoje trabalha no Senado federal; portanto, como se vê, vai muito bem. O Radir serve as forças armadas, é sargento do Exército Brasileiro, está muito bem, graças a Deus. O Revil é bacharel em direito, também funcionário do Senado Federal e envolvido na política regional; como o amigo vê, os meninos estão muito bem. Todavia seu Mane esqueceu, supõe-se que de propósito, do Didí, seu filho caçula, também conhecido como: Espinhaço de Cobra, devido um defeito físico que o mesmo tinha na coluna vertebral, diminuindo-lhe à estatura. Didí nunca quis estudar; para o trabalho também não tinha a menor vocação. Seu passatempo predileto era freqüentar o cabaré e uma mania, incorrigível, de enfiar o dedo no nariz. Pois bem, quando Seu Mane fez o comentário elogioso aos três primeiros filhos, esquecendo de propósito, de mencionar o último, um "espírito de porco*" que apiruava na oficina, perguntou: Seu Mane, e o Didí? A resposta veio em seguida; de início..., um pouco gaguejada: o Didí... o Didí... o Didí... Bem , o Didí come caraca, porem, isto é defeito de infância ! Risos ruidosos ecoaram na oficina.
Outra boa me foi contada por Arroz; que presenciou Seu Mane contar que reabasteceu, em Parnamirim, o Enola Gay - a fortaleza voadora que transportou e soltou as bombas atômicas sobre as cidades japonesas: Hiroshima e Nagasaki. Sabe-se, a bem da verdade, que tal bombardeiro jamais sobrevoou o Atlântico Sul. Muito embora, segundo ele, Manoel de Josino contou que, segurando na mangueira de combustível conversava com o piloto da aeronave, procurando aconselhá-lo, mostrando intimidade: “olhe Mike, se eu fosse você, não iria. Você não imagina a quantidade de pessoas que vai morrer”. “Como é que vai ficar sua cabeça, rapaz?” Disse mais, que encontrou-se muitos anos depois com aquele militar americano, nas lojas “quatro e quatrocentos”, e, o mesmo tinha confessado extra-oficialmente: “Josino você tinha razão. Até hoje não consigo dormir direito, pensando naquela covardia”.
Eita, Seu Manoel! No surrealismo você era incomparável. Assim sendo, amigos, dei umas poucas pinceladas, no dia a dia e na verve criativa deste mambembe da ilusão. Deus o conserve, se estiver vivo, Deus o tenha, se já se foi.
Natat-RN, out/2000. Gibson Azevedo da Costa

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